terça-feira, outubro 04, 2016

QUANDO É POSSÍVEL SER CULTO?

Imagine alguém que vive na roça, na zona rural, longe de cidade, aquele que tira  seu sustento da terra. Talvez crie galinhas, porcos e gado leiteiro. Num mundo isolado desse estaria ele obrigado a  viver uma vida mentalmente pobre, absorvido em sua lida e sem tempo para ler um livro, conversar com gente culta, ouvir palestra sobre economia, quem sabe psicologia ou mesmo filosofia? Porque o lavrador deveria viver de seu trabalho assim como vivem as abelhas na coleta de néctar, com conhecimento suficiente da posição do sol, da direção do vento ou dos ciclos das estações? Não poderia ele adquirir musculatura mental assim como adquiri calos nas mãos e hipertrofia os músculos dos braços? Estaria condenado a aprender meramente datas para plantar couves,  ou qual a melhor época para semear feijões, decorar as fases da lua, dos dias de festas no povoado e da  missa na igreja de pau à pique?
Qualquer homem da roça sabe distinguir as primeiras folhas do milharal que nasce das brotas de capim ou de ervas daninhas. Mas sabe ele distinguir uma sonata de Beethoven de uma peça de Mozart, ou ainda, que o cavalo de tróia era de madeira e que a montaria  de Alexandre tinha o nome de bucéfalo?
Parece-me que em quase todas as partes do mundo, ser agricultor é sinônimo de vida tosca, embora romântica. Justamente aquele indivíduo que vive em contato com a natureza, ver todos os dias os pores de sol e todas as auroras, pode terminar por não perceber a beleza das nuvens formando fantasmas de roupas brancas e amareladas, contornadas por  bordas vermelhas. Talvez, por isso mesmo, por ter todas as manhas e todas as tardes defraudando arrebóis encarnados, que tudo acaba sendo sem importância. O homem não olha para o céu, nem perscruta o horizonte a não ser para ver se vem chuva ou se o dia vai ser quente.
Só quem perdeu todo  esse paraíso é que aprende a valorizá-lo. Aquele que vive entre fumaça de automóveis, horizonte bloqueado por arranha-céus, ruas coalhada de gente e de ruídos de trens e fábricas, pode, de uma hora para a outra, refugiar-se no meio de uma invernada ou no sopé da montanha. Então ouvirá o burburinho da correnteza do rio, o canto dos pássaros e desejará admirar o sol que desce deslizando sobre o morro irregular e escuro, e aí irá se emocionar e exclamar: como é belo!
O triste é que a vida no campo está associada à vida simples, pobre, ingênua, sem graça e vazia. Em minhas caminhadas pela borda da floresta ou atravessando rios a nado, lembrava que por conhecer os dois mundos, aprendi a buscar não só prazer no meio do “nada” como fazer desse nada, desse mundo de plantas, pedras, animais, insetos, um universo não só emocionante mais também cheio de belas e agradáveis surpresas. Quando me exercitei na lida de agricultor e ganhei o meu pão de cada dia plantando abóboras e alfaces, meu objetivo era não só o de cumprir um ritual de que tinha saudades como o de poder plantar feijão e depois ler Homero, saboreando a ambos com o mesmo prazer. Acreditei até que plantar uma roça de milho é tão filosófico, tão criativo quanto escrever uma tese sobre Spinoza ou descrever numa monografia as contradições da teoria da relatividade comparada à mecânica quântica.

De qualquer forma a maioria dos roceiros parece feliz e não sente falta de Aristóteles, de Spinoza, de Descartes e suas vidas. Os biólogos e os antropólogos dizem que os seres vivos adquirem conhecimento de seu meio como estratégia de sobrevivência e nada além do que precisam para manter-se vivos e se reproduzirem. Nesse caso alguns seres humanos fogem à regra, pois estão sempre se metendo em confusão, seja ela religiosa ou filosófica. Querem conhecer mais do que plantar trigo ou fugir de raios nas tempestades. Mas os lavradores que conheci estão mais de acordo com as explicações dos biólgos. A maioria vive feliz com seu mundo simples e delegam aos deuses e santos as tarefas que demandam conhecimentos ocultos ou difícil de serem adquiridos, já que seu mister não o exige, ou pelo menos assim acreditam.
Invejo essa simplicidade da vida campesina, marcada pelo contato direto e muito próximo com o mundo natural, quase inteiramente dedicada aos instintos de sobrevivência e a procriação. Pelo menos não sofrem a angustia daqueles intelectuais que perderam a inocência de viver, enroscados em tantas perguntas sem respostas. Cultivam certas preocupações que são boas  para provocar insônias.


Certa feita, fui a um velório no sertão e, como todo observador ressabiado, fiquei observando e ouvindo os presentes. O que notei foi uma total falta de medo da morte. Todos desejavam que o defunto descansasse em paz como se por toda a sua vida não tivesse encontrado momentos de repouso. Tinham uma visão quase fatalista da vida e da morte, ou melhor, viam a vida como constante labuta e a morte como aquele momento de repouso, o descanso sem volta, o alivio das dores e suores da existência.  Pelo menos não percebi neurose nessa filosofia tosca e resignada, em certo aspecto melhor que a minha. 

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