Imagine
alguém que vive na roça, na zona rural, longe de cidade, aquele que tira seu sustento da terra. Talvez crie galinhas,
porcos e gado leiteiro. Num mundo isolado desse estaria ele obrigado a viver uma vida mentalmente pobre, absorvido em
sua lida e sem tempo para ler um livro, conversar com gente culta, ouvir palestra
sobre economia, quem sabe psicologia ou mesmo filosofia? Porque o lavrador
deveria viver de seu trabalho assim como vivem as abelhas na coleta de néctar,
com conhecimento suficiente da posição do sol, da direção do vento ou dos
ciclos das estações? Não poderia ele adquirir musculatura mental assim como
adquiri calos nas mãos e hipertrofia os músculos dos braços? Estaria condenado
a aprender meramente datas para plantar couves, ou qual a melhor época para semear feijões, decorar
as fases da lua, dos dias de festas no povoado e da missa na igreja de pau à pique?
Qualquer homem da roça sabe distinguir as primeiras
folhas do milharal que nasce das brotas de capim ou de ervas daninhas. Mas sabe
ele distinguir uma sonata de Beethoven de uma peça de Mozart, ou ainda, que o
cavalo de tróia era de madeira e que a montaria de Alexandre tinha o nome de bucéfalo?
Parece-me
que em quase todas as partes do mundo, ser agricultor é sinônimo de vida tosca,
embora romântica. Justamente aquele indivíduo que vive em contato com a
natureza, ver todos os dias os pores de sol e todas as auroras, pode terminar
por não perceber a beleza das nuvens formando fantasmas de roupas brancas e amareladas,
contornadas por bordas vermelhas.
Talvez, por isso mesmo, por ter todas as manhas e todas as tardes defraudando
arrebóis encarnados, que tudo acaba sendo sem importância. O homem não olha
para o céu, nem perscruta o horizonte a não ser para ver se vem chuva ou se o
dia vai ser quente.
Só quem perdeu todo
esse paraíso é que aprende a valorizá-lo. Aquele que vive entre fumaça
de automóveis, horizonte bloqueado por arranha-céus, ruas coalhada de gente e de
ruídos de trens e fábricas, pode, de uma hora para a outra, refugiar-se no meio
de uma invernada ou no sopé da montanha. Então ouvirá o burburinho da
correnteza do rio, o canto dos pássaros e desejará admirar o sol que desce
deslizando sobre o morro irregular e escuro, e aí irá se emocionar e exclamar:
como é belo!
O
triste é que a vida no campo está associada à vida simples, pobre, ingênua, sem
graça e vazia. Em minhas caminhadas pela borda da floresta ou atravessando rios
a nado, lembrava que por conhecer os dois mundos, aprendi a buscar não só
prazer no meio do “nada” como fazer desse nada, desse mundo de plantas, pedras,
animais, insetos, um universo não só emocionante mais também cheio de belas e
agradáveis surpresas. Quando me exercitei na lida de agricultor e ganhei o meu
pão de cada dia plantando abóboras e alfaces, meu objetivo era não só o de
cumprir um ritual de que tinha saudades como o de poder plantar feijão e depois
ler Homero, saboreando a ambos com o mesmo prazer. Acreditei até que plantar
uma roça de milho é tão filosófico, tão criativo quanto escrever uma tese sobre
Spinoza ou descrever numa monografia as contradições da teoria da relatividade comparada
à mecânica quântica.
De qualquer forma a maioria dos roceiros parece
feliz e não sente falta de Aristóteles, de Spinoza, de Descartes e suas vidas.
Os biólogos e os antropólogos dizem que os seres vivos adquirem conhecimento de
seu meio como estratégia de sobrevivência e nada além do que precisam para
manter-se vivos e se reproduzirem. Nesse caso alguns seres humanos fogem à regra,
pois estão sempre se metendo em confusão, seja ela religiosa ou filosófica.
Querem conhecer mais do que plantar trigo ou fugir de raios nas tempestades. Mas
os lavradores que conheci estão mais de acordo com as explicações dos
biólgos. A maioria vive feliz com seu mundo simples e delegam aos deuses e
santos as tarefas que demandam conhecimentos ocultos ou difícil de serem
adquiridos, já que seu mister não o exige, ou pelo menos assim acreditam.
Invejo essa simplicidade da vida campesina, marcada
pelo contato direto e muito próximo com o mundo natural, quase inteiramente
dedicada aos instintos de sobrevivência e a procriação. Pelo menos não sofrem
a angustia daqueles intelectuais que perderam a inocência
de viver, enroscados em tantas perguntas sem respostas. Cultivam certas preocupações que são boas para provocar insônias.
Certa
feita, fui a um velório no sertão e, como todo observador ressabiado, fiquei
observando e ouvindo os presentes. O que notei foi uma total falta de medo da
morte. Todos desejavam que o defunto descansasse em paz como se por toda a sua
vida não tivesse encontrado momentos de repouso. Tinham uma visão quase fatalista da vida e da morte, ou melhor, viam a vida
como constante labuta e a morte como aquele momento de repouso, o descanso sem
volta, o alivio das dores e suores da existência. Pelo menos não percebi neurose nessa
filosofia tosca e resignada, em certo aspecto melhor que a minha.
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