terça-feira, setembro 11, 2007

A OUTRA SELVA

Por: Abel Aquino
A região rural do entorno de Santa Cruz de Goiás era bastante montanhosa e os vales pareciam o interior de uma imensa fortaleza. A estrada que eu percorria margeava um estreito rio e de vez em quando via enormes construções cercadas por currais de madeira e com bicas d´água jorrando no quintal. A maioria dessas grandes casas estavam vazias, sem moradores. Mas a terra não estava abandonada, pois, da estrada, eu conseguia ver lavouras bem formadas e pastagens verdes dos dois lados.
Pelo que fiquei sabendo, pouca gente queria permanecer no campo. A maioria mudara para a capital, para a grande cidade.
No entanto Seu Martim teimou em ficar e com ele toda a família. Encontrei-o sentado no degrau da escada da porta da frente de sua modesta casa. Enquanto conversava, suas mãos calejadas dobravam as abas do chapéu encardido, evitando trocar olhares comigo. Falava calmamente e sem grande preocupação.
Até meu irmão foi embora, dizia. - Sei, continuou, que lá ninguém respeita ninguém; é tudo desconhecido... nem filho obedece aos pais. Eu sei disso... concluiu, levantando os olhos rapidamente.
Querem facilidades lá, argumentei.
É - tudo é fácil por um lado e difícil pelo outro. Pra estudar é mais fácil e pra aprender coisa que não presta também é, ponderou.
Você não deixa de ter razão, conclui.

O filho mais velho de Seu Martim devia ter mais de 18 anos e evitava conversar comigo. Era extremamente tímido. Imaginei que a cidade grande não seria realmente um bom lugar para ele viver; seria difícil se adaptar, adquirir os vícios da cidade.

Fiquei pensando comigo:
a vida no campo pode ser monótona e pouca coisa acontece que não tenha acontecido todos os dias. Mas a gente tem um bom controle sobre o próprio espaço. Na cidade a gente precisa, a todo momento, manter relacionamentos com desconhecidos, tem que arriscar nas travessias de ruas, na possibilidade de ser assaltado, enganado e, na maioria das vezes, sem condição de avaliar ameaças e perigos.
A grande cidade é que é uma selva, onde os perigos não são fáceis de avaliar, onde as feras são nossos próprios semelhantes.
Outra coisa que me impressionou, naquela região, foram as tais bicas d´água. Os moradores não faziam poço porque o terreno era muito rochoso. A solução foi construir suas casas próximas dos rios, dos riachos ou de nascentes. Do leito do rio abriam vala, desviando do curso e indo em direção da casa. A vala terminava em uma calha de madeira que elevava a água por um metro e a deixava cair na extremidade, formando a tal bica d´água. Ali podiam colher toda a água necessária, usando gamela, balde ou bacia. As roupas eram lavadas em gamelas ao lado da bica e batidas em prancha de madeira. A noite a gente dormia ouvindo o barulho daquela água, misturado com o pio da coruja, dos curiango e o coaxar dos sapos.

Era princípio de ano e ainda havia mangas nos pomares abandonados. Parei minha bicicleta, abri a porteira e passei o olhar pela parte externa da casa; havia um enorme quintal e não tinha sinal de gente. Só via folhas forrando o chão e poeira amontoada nas guarnições das janelas fechadas.
As mangas amarelas dependuravam dos galhos da mangueira, entre as folhas. Subi pelo grosso tronco, procurei o galha mais carregado de fruta e fui na direção da extremidade. O galho começou a vergar com meu peso. Deitei o corpo, estendi os braços e consegui alcançar uma meia duzia de gordas mangas. Apanhei uma por uma e as joguei ao chão, procurando lançá-las sobre a parte mais coberta de folhas secas para que não se machucassem.
Passei a tarde chupando mangas sentado ao pé da paineira e observando os esquilos correndo pelos galhos do abacateiro do fundo da casa.

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

NA TRILHA DA MATA

Por: Abel Aquino
Vou caminhando pela trilha estreita da floresta. Não preciso ter pressa. Vejo pedras de um lado e do outro, algumas apontam suas quinas para dentro da trilha e nossas pernas passam por elas com cuidado. Não há ruido estranho nessa hora. O sol está no ponto mais alto do céu e as folhas das árvores repicam a luz e deixam chegar ao solo somente pedaços disformes de claridade. As folhas mortas estão cobrindo o solo e eu forço a ponta da bota no solo para levantar essa folhas e ver a cor da terra.
Escolho um tronco caído para sentar e fico olhando a minha volta. Observo o movimento das folhas mais altas sobre a pressão do vento. Um pássaro voa de um galho para outro. Neste momento não consigo pensar, lembrar de vozes, de gritos de gente. Estou usufruindo do aroma das ervas e dos gorjeios da natureza.
Meu avô gostava de contar para as crianças as coisas da mata, dos encontros de bichos e homens e a gente ouvia embevecida. Ele sentava ao lado do fogão de lenha, olhava para nossas caras de meninos curiosos, levantava o dedo e falava de fatos e aventuras quase fantásticos. A floresta tornou-se, em nossa imaginação, o reino das histórias quase homéricas, recheadas de casos, sustos e medo.
Mas hoje não tenho medo, não sinto aquela ânsia de imaginar os perigos e imprevistos que podem acompanhar um homem caminhando pelas trilhas da mata.
Tento imaginar como seria a vida de nossos ancestrais, habitando cavernas, desconhecendo ruas, avenidas, carros, arranha-céus, aviões, poluição e vida estressante. Viam apenas matas, ruídos de animais, cantos de pássaros, trilhas, cachoeiras, vales verdes e montanhas pedregosas. Nós ganhamos outro mundo, talvez menos precário, mais confortável, com infinitas possibilidades de lazer e conhecimento, mas a que preço?
Estamos perdendo aquele mundo que povoava nosso solitário ancestral? Há incompatibilidade de mundos? A cidade expõe o quanto o ser humano conseguiu recriar a natureza, adaptá-la às suas necessidades, moldá-la, construir cavernas coletivas, meios de se mover rapidamente por terra água ou por ar, controlar o ambiente, iluminar a noite e comunicar-se rápida e facilmente uns com os outros. Mas, enquanto o ser humano concentra-se em transformar a natureza em coisas mais úteis e práticas, sua mente, seus instintos também foram recriados? As fantásticas leis da aerodinâmica possuem seu equivalente nas leis da razão humana?
Daqui posso ver árvores mortas, raízes expostas, sem contudo abalar a presença da vida, uma diversidade quase impossível de quantificar. Esse região está admiravelmente preservada, tem poucas fazendas de gado, raras estradas de terra e só algumas habitações no fundo dos vales. O povo desse região não é do tipo empreendedor, cultivam terra só para subsistência e próximo à casa. É um povo meio índio. Contudo gosta de caçar e pescar. Agora mesmo ouço tiros de espingarda ao longe. Imagino o caçador, um típico matuto, abatendo a última cerva, quem sabe prenhe. Quem sabe a última representante e sobrevivente de sua espécie. Mas, infelizmente, o caçador não tem essa consciência. Se não ver mais caça, aposenta sua espingarda sem especulação, sem preocupar com a diversidade biológica, com a preservação de animais e plantas. Essa preocupação está presente mais comumente nos indivíduos da cidade. Esses mesmos que vivem na monotonia dos edifícios, das ruas asfaltadas, das praças mal conservadas e, talvez por isso, mais deslumbrados com a natureza.