terça-feira, março 31, 2009

POÇO ABANDONADO

O cavaleiro vinha pelo pasto no meio da chuva. Evitava a estradinha porque por ali descia uma enxurrada violenta. Contornou a cerca, que ficava ao lado do capinzal, puxando a rédea com cuidado para que o cavalo não escorregasse. O chapéu de abas largas estava encharcado e vertia água pelas extremidades.
A longa capa cinza escura protegia seu corpo da chuva e, amarrada no pescoço, rodeava todo o corpo e cobria até as ancas do animal. Era o Sebastião, irmão do proprietário da fazenda. Acompanhei de longe, com o olhar, as passadas curtas do cavalo pelo pasto, aproximando próximo à linha da cerca de arame farpado.Eu estava sob a cobertura do paiol de milho e da doca do carro de boi.
De repente a montaria e seu cavaleiro sumiram diante de meus olhos. Gritei assustado. Vi que do canto da casa o Jacinto corria na direção do local onde o cavaleiro desaparecera. Sai na chuva também e rumei para lá. Na extremidade do pasto, quase no cruzamento da cerca de arame com a cerca de madeira, vimos, primeiro as orelhas e o focinho do animal e abaixo, abraçado ao seu pescoço, o cavaleiro, desesperado, nos gritava por socorro. Compreendi que haviam caído num poço abandonado, coberto de madeira e terra e que cedera com a chuva e o peso do cavalo. Os olhos do animal pareciam saltar para fora, suas ventas sopravam dilatadas e trêmulas. Por sorte o animal caíra com as ancas para baixo e as patas dianteira estavam estendidas para cima, quase tocando as bordas do poço. Tínhamos que fazer alguma coisa. Jacinto correu de volta para a casa sem dizer nada.
Deitei-me ao solo e tentei esticar o braço para alcançar a mão do Sebastião, o cavaleiro, mas, quando ele soltou um dos braços que o seguravam agarrado ao animal, quase escapou e por pouco não escorregou para mais baixo, onde fatalmente seria esmagado pelo corpo do cavalo. Este estava desesperado; agitava as patas traseiras, vergava o lombo e arranhava a borda do buraco com as patas dianteiras na tentativa de se erguer. Sebastião permanecia agarrado ao pescoço do cavalo e sentia que com qualquer descuido cairia para o fundo e seria esmagado.
Jacinto surgiu com uma corda e com o laço de couro cru. Dois outros homens o acompanhavam . Eram o Dico e o Osvaldão, os peões da fazenda. Jacinto lançou a corda e Sebastião, fez um grande esforço para segurá-la com uma das mãos mas tinha medo de escorregar. A ponta de corda desceu por entre seus braços e encostou no peito. Gritei para que abrisse as pernas e apoiasse no barranco, mantendo o corpo colado ao animal e assim poderia soltar as mãos e agarrar a corda. Foi o que fez. Juntamos todos os quatro homens e puxamos a corda lentamente. Essa penetrou na beira enlameada do poço e afundou, tornando muito pesado puxar. Sebastião ficou suspenso no ar tocando as botas no lombo do cavalo mas nós não conseguíamos puxar mais. Falei para os outros aguentarem o peso, mantendo a corda esticada, enquanto eu deitava no barro e puxava a corda abaixo do barranco. Conseguimos puxar mais um metro e as mãos do cavaleiro ficaram ao meu alcance. Agarrei seus pulsos e gritei para que enfiasse as pontas da bota na beira do poço e impulsionasse para cima. Com dois trancos consegui tirá-lo para fora. O cavalo, vendo seu dono na margem, ficou extremamente agitado; relinchava desesperadamente e cavava, com as patas dianteiras, o canto do poço, mas, com isso, só conseguia afundar-se mais ainda. O barro que caíra, já estava prendendo suas patas traseiras no fundo do poço. Jacinto preparou o laço. Olhei para ele; a água escorria pelo furo do velho chapéu de palha, sua roupa encharcada revelava um corpo musculoso e forte apesar de seus quase sessenta anos. Quando ia jogar o laço no pescoço do cavalo soterrado, avisei: - Jacinto isso não vai dar certo.
Também acho, respondeu ele. – só vou enforcar o pobre animal, concluiu.
Temos que pensar noutra coisa, argumentei. – podemos tentar amarrar a corda abaixo das ancas dianteiras.
E, se cavarmos a beirada, fazendo uma rampa, vai facilitar o arrasto, pensou em voz alta.
É uma boa idéia, respondi.
Dico, corre ao galpão e traga enxada, pá e enxadão para abrirmos uma vala na frente do animal.
Enquanto Dico buscava as ferramentas, jogamos a corda ao fundo do poço e, com uma vara, tentei fazê-la sair do outro lado do corpo do animal, mas não consegui. Achei melhor fazermos uma laçada na ponta da corda e enroscar nela a vara. Depois de duas tentativas consegui contornar o corpo do animal e deixei a laçada do outro lado. Desprendi a vara, enfiei-a pelo outro lado e fiquei tentando pescar a laçada da corda no fundo do poço, acima das patas traseiras. Só parte das coxas estavam fora da lama e, na tentativa de pescar a laçada esta afundou na lama e eu não conseguia vê-la. A chuva parecia mais forte e trovões ribombavam na serra. Os relâmpagos cortavam os céus pesados de nuvens cinzentas. A água corria pelo meu rosto, e embaçava minhas vistas. Dico chegou e imediatamente começaram a cavar a vala no rumo das patas dianteiras do cavalo. Este olhava com seus olhos esbugalhados e cheios da água da chuva, relinchava como que entendendo o esforço que fazíamos para tirá-lo dali. Quando Dico cansou, Osvaldão pegou na enxada e começou a puxar a terra, agora mais lama que terra. Uma leve enxurrada começou a fluir para dentro do buraco. Jacinto gritava: - vamos rápido com isso que a chuva vai encher o poço de água logo, logo. Eu peguei a pá e comecei a colher o barro e jogava para mais distante e à frente da vala para evitar que a lama escorresse para dentro.
Sebastião estava sentado num tronco caído e olhava tudo com ar distante e perdido. Sua capa enlameada de barro vermelho estava rasgada e rota. Osvaldão alcançou rapidamente a altura das patas do cavalo e o enxadão era manuseado com cuidado para não ferir-lo.
A vala estava com um metro de profundidade junto ao poço e subia em forma de rampa até dois metros adiante.
Tentei novamente pescar a corda que estava enterrada na lama no fundo do poço.
Com a vara, fui apalpando até encontrar a laçada da corda. Com cuidado, fui puxando e consegui trazê-la até a borda. Jacinto pegou numa das pontas e eu peguei na outra, passei a ponta pela laçada e puxamos cuidadosamente a corda de forma a ir escorregando no corpo do animal até fechar em torno das ancas dianteiras. Amarrei outro pedaço de corda no meio da primeira e conseguimos ter dois pegas para puxar. Jacinto laçou o pescoço do animal com o laço de couro cru e começou ao puxar. Eu e Sebastião pegamos numa punta da corda, Dico e Osvaldão na outra, e começamos a puxar. O cavalo esperneou, relinchou, mas não se moveu do lugar.
Tive a idéia de deixarmos a água correr para dentro do poço e com isso o animal poderia flutuar e sair mais fácil. Todos concordaram comigo. Nessa hora, um ar de desânimo já se estampava no rosto de cada um deles. Quando a água subiu até o pescoço, voltamos a esticar as cordas e o laço. Desta vez o cavalo conseguiu soltar as patas traseiras da lama e seu corpo flutuou. Puxamos mais uma vez e ele conseguiu ajudar com as patas dianteiras e avançou pela vala até firmar as patas traseiras. Nesse momento afrouxamos as cordas e o cavalo saltou para frente e alcançou a terra firme. Relinchou como que agradecido e Sebastião foi fazer um carinho no seu pescoço.
Seguimos para dentro da casa, debaixo da chuva que não dava trégua, cansados, enlameados, mas contentes. Sebastião vinha logo atrás, trazendo seu animal no cabresto, em direção do estábulo. A capa de chuva ficara enroscada na cerca e ele não se importou em recolhê-la.