terça-feira, setembro 07, 2010

SESSENTA VELAS PARA JACINTO

Abel Aquino

No dia do em que completou sessenta anos, Jacinto percebeu que sua vida passara. Levantou de manhã, desejando ouvir alguém cantando “parabéns pra você” como nunca desejara. Enquanto tomava o café como fazia há muitos anos, folheava uma velha e rota revista. Deteve-se numa foto de um casal abraçado, sorrindo e viu sua vida percorrer a mente como um filme em alta velocidade. Foi até o banheiro e observou seu rosto refletido no espelho. Sua pele excessivamente branca estava vincada e áspera, com sardas protuberantes e rugas profundas. O cabelo grisalho substituíra as mexas ruivas da juventude.
Além da mãe - que morrera cedo - não conseguia se lembrar de alguma mulher importante em sua vida. As poucas vezes em que fizera sexo, foi com prostitutas ocasionais. Lembrou-se da Joana, a baixinha que mandava recados através das amigas, mas a qual nunca dera resposta. “Parece que eu sempre tive medo das mulheres”, pensou.
Nunca fora um homem de festas, mesmo na juventude; não sabia dançar nem perdia tempo com música; só sabia trabalhar. O primeiro emprego, fora carregar lenha numa carriola de madeira; tinha dez anos de idade. A partir daí, a vida foi só trabalho. A única diversão era ir aos domingos assistir as peladas de futebol que aconteciam no campo dos Gonçalos. Nos fins de tarde, passava algumas horas no botequim do Biro, tomando pinga e fumando. Essa era sua vida.
Depois que a mãe morreu, passou a ouvir dos conhecidos que precisava casar, arrumar uma companheira. Aborrecia-se com aquilo, mas nunca perguntou a si mesmo o porquê. A mãe, a mulher com quem mais conviveu, era quieta, triste e também muito solitária. Seu pai a abandonara com dois filhos pequenos. O irmão, que era mais velho, saiu de casa aos 12 anos e foi viver longe. Visitava a mãe uma vez por ano e nada falava da família que formara. Jacinto sabia que tinha dois sobrinhos e uma sobrinha, mas não os conhecia. O irmão, quando vinha visitar a mãe, apenas o cumprimentava, sem trocar palavras que não fossem monossílabos, tipo “sim”, “não”, “é”.
Agora, com sessenta anos, Jacinto sentia angustia e solidão. Olhou pelo corredor que dava para a cozinha e imaginou que mulher alguma ali passava, vindo do quarto ou indo fazer comida. Tinha apenas a Clotilde que vinha fazer a limpeza, uma vez por semana. Jacinto a pagava com prazer depois de ver a casa organizada e cheirosa, as roupas lavadas, passadas e guardadas no armário.
Lembrou-se de que uma vez ficou a observá-la encerando o assoalho. Trabalhava cantando, alegre e cheia de energia. Jacinto aproximou-se e sentiu o cheiro de suor feminino. A saia estampada terminava acima dos joelhos e podia-se ver um par de pernas vigorosas e bem cuidadas. Sentiu vontade de agarrá-la, apertá-la nos braços e apalpar o corpo macio, apertando as partes mais íntimas. Assustou-se com a idéia, desviou o olhar e caminhou para fora. Clotilde era casada, um pouco feia e jamais demonstrara alguma atenção especial ou consideração por Jacinto. O marido é que dizia:”ocê precisa arrumar uma mulher para cuidar da casa e de ocê” repetia zombeteiro. Oferecia sua cunhada, viúva e cheia de filhos para criar. Jacinto fazia careta e evitava dar desculpas para não estimular mais ainda as insinuações.
Mas sessenta anos passaram-se rapidamente e precisava alterar o rumo da vida, antes que tarde demais. “E já não seria tarde de mais?” Perguntou a si mesmo. Alguma mulher poderia querer, agora, um velho como ele? Mas uma coisa estava decidida; não iria trabalhar no dia do aniversário.
Barbeou-se, tomou banho, escovou cuidadosamente os dentes, vestiu a melhor roupa que tinha e saiu para a rua, disposto a ver pessoas, conversar, tagarelar e principalmente encontrar mulheres. Sim, precisa papear com mulher. Pensou em procurar uma prostituta, mas afastou rapidamente a idéia. “Hoje quero fazer coisa diferente”, falou com seus botões. Escolheu fazer um passeio pelo comércio, pela praça e por onde pudesse cruzar com mulheres. Entrou no mercado e viu a Tereza arrumando as gôndolas.
- Bom dia, Tereza!
- Bom dia, Jacinto. – O que aconteceu com ocê hoje, todo arrumadinho num dia da semana!
- É meu aniversário, respondeu sorrindo.
- É! Ta bonitão! Brincou, abrindo os braços e os descansando nos quadris, com ar sensual e alegre.
Jacinto excitou-se. Pensou em seu íntimo: “o que está acontecendo comigo?” – “Parece que estou com aquele fogo dos vinte anos?!”
Mas sabia que ali não era lugar para ficar proseando com uma mulher em seu horário de serviço. Trocou mais algumas palavras com a Tereza, despediu-se e saiu do mercadinho.
- Não vai comprar nada? Ouviu-a perguntar atrás de si.
- Depois eu volto, respondeu, saindo para a rua.
Na praça, viu uma mulher sentada no banco de pedra, cuidando dos dois filhos que brincavam no canteiro de grama. Lembrou-se de que nunca tivera a experiência de ser pai, de ter filho para cuidar. “Por que será que só agora penso nisso?” “Será que é porque estou chegando ao fim da vida?” Não sabia responder.
Desceu a rua do Alípio e lembrou-se da Marcela, a dona da venda de doces, mulher descasada, muito prosa. Jacinto dirigiu-se para lá. Viu a empregada passando pano no chão com o rodo. De vez em quando ela parava e chutava um cão teimoso que tentava entrar.
- A dona Marcela está? Perguntou timidamente.
- Deu uma saidinha, mas já volta, explicou a moça. Quer alguma coisa?
- Sim, quero dizer, encomendei algo e preciso falar com ela, gaguejou Jacinto.
- Ela volta logo, concluiu a empregada, continuando a esfregar o piso.
Esperou alguns minutos e decidiu continuar sua caminhada.
- Volto mais tarde, explicou para a moça, seguindo em frente.
Perto do meio dia, já havia proseado com uma dezena de pessoas, mas com nenhuma mulher. Decidiu almoçar no pequeno restaurante do Marcola.
- O que deu em ocê? Perguntou curioso.
- To comemorando meu aniversário, hoje; não vou nem trabalhar, respondeu, procurando um lugar para se sentar.
- Faz bem, argumentou o comerciante, esfregando as mãos.
- O que vai comer?
- Pode ser bife acebolado e aquele molho de batata, que adoro.
- Ótimo! Arroz, feijão, bife e molho. – Alguma salada?
- Pode vir.
- Alzira, gritou Marcola, prepara um almoço caprichado para nosso amigo Jacinto; bife acebolado e molho de batata, de mistura. – uma salada também, concluiu.
A mulher surgiu na porta que dava para a cozinha, cumprimentou Jacinto e foi preparar o pedido.
- Essa sua cozinheira é muito boa, comentou Jacinto.
- É boa em tudo, respondeu o homem com um sorriso zombeteiro.
- É, exclamou Jacinto, sem entender.
- Ocê precisa ver na cama como capricha, cochichou Marcola, inclinando o corpo sobre a mesa e olhando dentro dos olhos de Jacinto.
Jacinto estremeceu, embaraçado. O homem endireitou o corpo, mantendo o sorriso irônico.
- Mas ocê é casado, Marcola, sentenciou Jacinto.
- Sou casado e sei dar minhas escapadas, voltou a dobrar o corpo na sua direção. – Acho que me satisfaço só com a velha? Homem nenhum pode ter uma mulher, só... perde a graça, comentou, mais irônico ainda.
- E é? Gaguejou Jacinto.
- Ocê deve gastar uma nota no puteiro todo mês, não? – é solteiro, sem mulher em casa para esquentar a cama... continuava zombeteiro.
Jacinto abaixou os olhos e respondeu com a voz baixa:
- Gasto sim!
- É assim mesmo, meu amigo! A Alzira ganha pra cozinhar e, nas horas vagas, faz hora extra particular, concluiu rindo.
Jacinto nunca pensara dessa maneira. Jamais perdera tempo em imaginar que o mundo era assim tão cheio de sexo e excitamento, como era para o Marcola.
Voltou para casa contente. O mundo ainda o surpreendia. Sentiu que vivera sessenta anos de uma vida monótona sem ver que outro mundo corria a sua volta e não percebia. Aproximava de casa quando viu a Clotilde.
- Bom dia! Cumprimentou, sem reparar que já passara do meio dia.
- É boa tarde, Jacinto. – Como você está bonito hoje! Que acontece? Perguntou, admirando-o de alto a baixo.
- Hoje é meu aniversário e não fui trabalhar, explicou, evitando cruzar os olhares.
- Meus parabéns! Desejou a mulher. – Quer que eu vá dar uma limpadinha na sua casa e ocê passa o resto do dia de aniversário numa casa mais em ordem?
- Eu quero, sim, respondeu satisfeito.
Meia hora depois Clotilde chegou. Havia trocado de roupa, penteado o cabelo e pintado de vermelho os gordos lábios. Jacinto sentiu um frio na barriga. Enquanto a mulher varria a casa, ia de um lado para o outro, mas evitava observá-la para não se excitar. Sentou-se na poltrona da sala e acendeu um cigarro, buscando relaxar. Depois de varrer e passar pano em toda a casa e lavar as vasilhas da cozinha, Clotilde perguntou onde estavam as roupas sujas.
- Vou por de molho, explicou.
Jacinto olhou-a como nunca tinha olhado. Os seios redondos e firmes escapavam do decote do vestido. O sorriso malicioso causou cala-frios.
- O Aldo está trabalhando? Perguntou, preocupado com os pensamentos obscenos que o acometiam.
- Não tá, respondeu. – Foi fazer um carreto para o Seu Juvenal; volta amanhã, concluiu com ar casual.
Jacinto sentiu de novo aquele frio percorrendo a espinha. Levantou da poltrona e foi até o quarto juntar as roupas usadas para entregar a mulher. Catou, sem pressa, as roupas espalhadas pela cama, as enroscadas na cadeira e as jogadas no chão. Sentiu o perfume da mulher. Olhou para trás e ali estava ela a um passo, olhando fixamente. Pensou: “até que não é feia”. Os olhos dela procuravam os seus. Jacinto ficou perturbado com aquele penetrante olhar e baixou a cabeça. Ela estendeu a mão.
- Ocê tá bem? Perguntou num sussurro.
Jacinto levantou os olhos, disposto a reunir coragem e a seguir em frente. Pegou a mão estendida. Estava quente e macia. Deu um passo para frente e encontrou o corpo trêmulo e macio. Viu os lábios abrirem-se, molhados e macios.Fechou os olhos e encostou os seus próprios lábios naquela boca exposta e excitante. Foi um beijo demorado. Quando abriu os olhos, viu que a mulher puxava as alças do vestido e o deixava cair.
Foi o melhor sexo que jamais experimentara.
Terminado, jogou-se na cama, enquanto a mulher recompunha a vestido. Ela saiu, em silêncio. Jacinto fechou novamente os olhos. Sua cama parecia girar, seu peito arfava. Não podia acreditar que jamais conhecera tanta emoção em sessenta anos. A mulher continuava a trabalhar; pôs a roupa suja de molho e bateu o pó dos móveis da sala. Jacinto ouvia os ruídos que ela fazia, imaginando que seria uma ótima coisa ter mulher para si, cuidando da sua vida, conservando a casa limpa e arrumada, além de dar prazer e calor na cama.
Clotilde falou do corredor.
- Acabei. Vou embora, explicou com voz serena e quase indiferente.
- Ta, respondeu jacinto, sem se mexer na cama.
Agora, mais do que nunca, dispôs-se a imaginar uma nova vida. Decidiu-se a não viver mais sozinho. Sim, iria arrumar uma companheira, tinha convicção disso.