sábado, fevereiro 07, 2009

O TRÁGICO E A SIMPLICIDADE

Fiquei intrigado quando descobri que havia gente morando no alto da montanha. Pela estrada via o terreno coberto de pedras e fendas cortando picos rochosos. Era uma paisagem árida e bruta. Alguém poderia viver alí? O caminho seguia fazendo curvas para a esquerda e depois para a direita. O sol forte brilhava sobre as folhas das árvores retorcidas que teimavam em agarrar-se nas encostas pontilhadas de rochas avermelhadas. Alguns quilômetros adiante abria-se um planalto e o mato adensava. Mais alguns metros e pude ver uma casinha de tijolo cru. Do cume, ao norte, nascia um filete de água transparente e fria, passava por entre pedras enormes soltas no terreno e caía numa pequena represa, ao lado da construção. Ao leste havia um pequeno curral de madeira roliça, com partes caídas e a porteirinha amarrada com cordas. Quando me aproximei, uma senhora surgiu do terreiro do fundo, limpando as mão no avental encardido. Duas crianças corriam ao seu lado e chegaram primeiro ao meu encontro. Cumprimentei a todos e a senhora convidou-me para entrar sem perguntar o que eu fazia alí. Procurei pelo dono da casa e ela me disse que estava na roça, mas logo voltaria. Convidou-me para sentar e explicou que iria à cozinha preparar o café.
Alguns minutos depois o homem surgiu pela porta dos fundos. Era um homem baixo franzino, moreno, com a pele curtir pelo sol. Tirou o chapéu e veio me cumprimentar. Parecia não me ver como estranho. Apertou virilmente minha mão, sorrindo e balançando a cabeça para a frente em sinal de respeito. Não parecia que estava me vendo pela primeira vez. Nenhuma curiosidade em seu olhar, embora evitasse me encarar. A mulher surgiu com um pires à mão, equilibrando o copo de louça branca cheio de café cheiroso. Peguei o pires com a mão direita, passei para a esquerda e com a mão livre levei o copo a boca. O café estava delicioso. Voltei a me sentar e puxei conversa.
- Não imaginava haver gente morando nessas alturas, comentei.
- É difícil mesmo. Mas tem mais outros dois moradores nas redondezas, explicou o anfitrião.
Sua mulher permanecia de pé ao seu lado. Vi as crianças cochichando junto à porta que separava a sala da cozinha. A mulher arrastou uma cadeira para o marido e se retirou.
O homem sentou-se e perguntou meu nome.
- Meu nome e Thomaz.
- Meu nome é Zé. José Arimatéia, mas o pessoal me chama de “Rima”.
- È difícil aparecer gente aqui, comentou.
- Acredito, respondi. - Fico contente que me tenha recebido bem em sua casa.
- Há! Visita é sempre uma felicidade pra gente que vive tão só nesse sertão, afirmou com um leve sorriso.
- Imagino, conclui.
- O senhor fica pro almoço? Perguntou.
- Não sei se é possível. Estou fazendo levantamento dos habitantes da região para a Sucam, expliquei.
- Você é dos Malárias.
- Sim, respondi sorrindo.
- (Malárias são conhecidos os agentes de saúde que trabalham na campanha de combate a malária e outras endemias pelo interior de Goiás)
O casal de criança corria de um lado para o outro em volta de nós. O pai ralhou com eles para que ficassem quietos.
Perguntei o nome do menino que olhava para mim, tentando aquietar-se.
- Zildo, respondeu o menino.
- Fala direito seu nome, moleque! zangou-se o pai. – É Ezildo, moço, conclui o homem, dando um leve tapa na cabeça do filho.
- E o seu? Perguntei para a menina que parecia ser mais nova que o garoto.
- É Marta, respondeu, escondendo atrás do pai.
- E quantos anos você tem?
- 6 anos.
- Você é muito bonita, elogiei a menina.
Ela sorriu envergonhada. Puxou o irmão pelo braço como que querendo que eu voltasse a fazer perguntas a ele.
- Você tem mais filhos? Perguntei a pai.
- Tenho outra filha mulher que está com a avó na cidade.... pra poder estudar.
- Entendo, balancei a cabeça em aprovação. – E esses dois ainda não estão na escola?
- Não sei como fazer. O garoto já fez 7 anos, mas aqui não tem escola. – Penso em ir pra a cidade pra eles estudar. Só que lá preciso de emprego. Aqui planto minha roça e trabalho pros fazendeiros... só sei mexer com gado e lavoura.
Olhei para fora e vi que o sol brilhava mais alto e que as horas estavam passando. Despedi-me deles e saí em direção ao sul a procura dos outros moradores. Antes do cair da tarde precisava voltar, descer a serra até Santa Cruz, onde estava hospedado.
A paisagem daquela montanha não tinha beleza como em outras regiões. Havia muita pedra e as árvores eram pequenas espinhentas e retorcidas. Nos pequenos vales com planícies estreitas, cortadas por riachos, os moradores plantavam lavouras, principalmente milho e feijão. As planícies úmidas que vi não passavam de uns duzentos metros de largura. Muitas vezes os córregos eram represados para que formassem pequenas lagoas, onde criavam peixes e desviavam água para suas casas.
Voltei diversas vezes à montanha da Contenda e sempre tomava café na casa de taipa do Rima. Zeneide, sua esposa, preparava um saboroso café que eu sorvia acompanhado de pedaços de queijo ou batata doce que ela trazia numa bandejinha de lata.
As crianças adoravam prosear comigo. Eu sentava no banco de troncos que ficava do lado de fora da casa e Ezildo e Marta ficavam pulando a minha frente, gesticulando e balançando o corpo como numa dança. Marta apesar de menor era mais conversadeira e alegre; seus cabelos, meio rebeldes, cacheados caiam nos ombros e cobriam parte do rosto. Ela constantemente puxava com as pontas dos dedos as mexas e passava para trás das orelhas. Ezildo gostava de contar dos tombos que sua irmã tomava, como no dia em que atravessavam o riacho, pulando de pedra em pedra; Marta acabou caindo e molhando-se toda ou quando ela correu da vaca que viera cheirá-la inofencivamente.

No final do verão voltei à casa do Rima, durante minhas periódicas rondas de avaliação de controle de endemias, no caso para detecção da presença do percevejo bicudo, causador da doença de Chagas.
A casinha de adobe estava com a porta e a janela abertas, mas não vi gente nem os cães. Parei próximo à porta e gritei:
- ô, de casa! Silêncio.... só ouvi o cacarecar das galinhas, ciscando um monte de gravetos.
- Ô, de casa! Repeti.
Dei a volta em torno da casa, vi que a porta da cozinha também estava aberta, mas não havia ninguém. Olhei para o sul, no rumo da roça, para o norte, na direção da nascente do riacho e não vi gente alguma. Caminhei para a frente da casa e peguei a estrada de volta. Então vi o Rima surgir por detrás das rochas vermelhas, trazendo um bezerrinho nos braços. Zeneide o acompanhava e mais atrás vinha o menino. Esperei que eles se aproximassem, cumprimentei-os sem pegar a mão e seguimos em direção do curral, onde Rima colocou o bezerro.
- O Sr ‘tá bem, seu Thomaz! Perguntou sorrindo e estendendo o braço.
- Eu estou bem, Rima, e vocês?
- ‘Tamos como Deus quer, respondeu. – Vamos chegar, convidou-me, seguindo lentamente em direção à porta da casa. Olhei para Ezildo , o garotinho. Ele tinha um boné cinza empoeirado na cabeça e me olhou sem muita alegria. Bati, de leve, a mão nas suas costas e caminhei com eles. Zeneide foi na frente.
Entramos na casinha e Rima puxou uma cadeira e ofereceu-me para sentar.
- Onde está a Marta? Perguntei.
Os dois se entreolharam, ficaram alguns segundos em silêncio. Rima olhou para mim, sério.
- A nossa filhinha morreu... afirmou baixando os olhos.
- Como assim? Ela morreu? Perguntei incrédulo.
- É verdade, cochichou.
- Mas como ela morreu? Insisti.
- Foi picada de cobra.
- Picada de cobra? Mas hoje em dia ninguém morre de picada de cobra, comentei. E continuei: - é só levar ao médico.
- É mas a gente levou ao benzedor.
- Estão brincando? Perguntei incrédulo.
- É, mas ele benzeu o filho do Joaquim e o veneno não fez nada com ele.
- Mas Rima! Exclamei revoltado. – Nem sempre a cobra mata ou tem veneno suficiente para matar. Vocês deviam ter levado a menina ao hospital.
- Daqui é difícil, justificou Rima cabisbaixo e envergonhado.
- Fosse de cavalo até a fazenda mais próxima.
- Eu sei, respondeu. Quem sabe era o destino dela... concluiu resignado.
Fiquei calado, remoendo por dentro. Aquele casal vivia uma vida tão simples, tão inculta que o mundo deles não era o meu mundo. Viviam isolados, não frequentavam a igreja, não conheciam gente com estudo para trocar informações sobre a vida e até mesmo sobre o mundo de hoje. Eu, sinceramente não sabia o que dizer a eles.
Tentei reconfortá-los.
- Ela deve estar descansando no céu, afirmei sem muita convicção.
- Jesus há de cuidar dela, exclamou Zeneide, a mãe.