terça-feira, agosto 02, 2011

DEPOIS DA CHUVA

Percorri a margem do rio, pela trilha dos pescadores. Havia locais em que restos de embalagens de plástico ou papel, carvão e madeira queimada indicava o local preferido dos pescadores para acampar. Numa parte em que o barranco ficava mais alto, sentei numa pedra e olhei para o meio do rio. Havia chovido na noite anterior e as águas estavam barrentas e bravas. O nível da água subira pelo menos um metro e no meio da correnteza, de vez e quando passavam pedaços de paus, galhos e troncos flutuando no meio da turbulência do rio. O dia estava fechado, sem sol. As folhas das árvores e o capim permaneciam úmidos e as trilhas mantinham poças de água e barro. Não era um dia bom para pescaria. Levantei-me e continuei a caminhar pela margem irregular. A trilha subia, descia, virava para a esquerda, depois para a direita, aproximava da margem, em seguida afastava da margem, contornando pedras e árvores, atravessando grotas e seguindo leitos de enxurradas.
Depois de caminhar por mais de meia hora, cheguei à curva do rio, onde o leito abria num quase lago, de águas mais calmas. O barranco externo da curva tinha marcas do choque constante das correntezas, forçadas a se desviar. Aquela curva funcionava como freio, deixando as águas mais calmas e ali era o ponto preferido de pesca por todos os pescadores que conheci. Perto da curva havia um pequeno rancho de palha, sem paredes, construído para dar abrigo aos pescadores. Quando me aproximei vi gente; dois deles estavam agachados na margem com a vara fincada na terra e a linha mergulhada nas águas sossegadas do rio; outro mexia com o fogo de um fogão improvisado sob a cobertura do rancho, ainda outro abria um peixe com a faca, tirava suas vísceras e jogava para um par de cães que saltitavam a seu lado.
- Bom dia! Cumprimentei o homem que ajeitava a lenha no fogão improvisado com pedras. Uma panela fervia sobre essas pedras.
O homem levantou a cabeça, olhou para mim e sorriu, devolvendo o cumprimento. Os outros voltaram suas cabeças na minha direção. Cumprimentei a todos. Um deles eu conhecia, era o Joaquim, o primeiro que estava pescando. O que estava limpando o peixe veio em direção do fogo, pegou uma vara, atravessou o corpo aberto e sem viceras e colocou-o sobre as brasas, ao lado da panela.
Achei que era uma oportunidade de prosear um pouco e ficar conhecendo o mundo daquelas pessoas aparentemente comuns.
Sentei-me num tronco caído, diante do fogo e percebi que aquelas b pessoas me aceitavam com naturalidade. Todos continuavam a fazer o que estavam fazendo. O que estava mexendo na panela sobre o fogo era o Pedro Boiadeiro. Ele olhou para mim e disse:
- Você não veio pescar, veio?
- Não, respondi.
- Você apareceu com as mãos abanando, completou…
- É, estou aproveitando o domingo para perambular pelas margens do Rio.
- E acha divertido?
- Sim, descansa a mente.
- O que me descansa é pescar, explicou Pedro Boiadeiro.
- Eu entendo.
O homem que limpava um peixe, agora estava preparando um cigarro de palha e de vez em quando olhava para mim, sem dizer uma palavra.
Perguntei o seu nome e ele respondeu rapidamente.
- Sou o Gerônimo, o filho do Vicentino.
- Há! Já ouvir falar de você, respondi.
- Ei, Thomaz! Chega até aqui, chamou Joaquim da beira do rio.
Fui até lá e fiquei de pé a seu lado,enquanto ele segurava a vara de pescar, com a linha e o anzol mergulhados na água.
- Fiquei sabendo que ´ocê é vegetariano.
- Sim, sou, respondi.
- A Marilda me disse que jantou na casa dela. – Teve que fritar quatro ovos para ´ocê, comentou rindo.
- É verdade.
- Mas, não come nem peixe?
- Não. Nem galinha?
- Só o ovo da galinha? Respondi divertido.
- Sim.
- Ei, gente! Gritou Joaquim voltando para os outros companheiros de pescaria. – Ele não veio pra comer nossos peixes; ele é vegetariano, explicou dando uma gargalhada.
- Com certeza, conclui, meio sem jeito.
- Já vi ócê em Santa Cruz, falou o homem que pescava mais adiante, no inicio da curva do rio.
- Sim, estou morando lá já faz um ano, respondi. O homem era calvo, atarracado e tinha uma cicatriz no rosto.
- Meu nome é Tarso, explicou, sorrindo.
- Muito prazer, respondi.
O cheiro forte de peixe assado espalhava-se no ar. Algumas aves passavam voando baixo e um Martim pescador pousou no galho de uma árvore inclinada sobre o rio, do outro lado. Olhei para o rancho e vi o homem que assava o peixe, cortar uma lasca do corpo do mesmo e experimentar com prazer.
O homem que se identificou como Tarso, da cicatriz, deixou a vara fincada na barranca do rio com a linha mergulhada na água e veio em minha direção.
- Cuidado! Esse ai é pistoleiro, gritou, rindo, o Joaquim, apontando para o homem
- É perigoso? Perguntei, encarando-o.
- É graça dele, replicou Tarso, estendendo a mão para me cumprimentar. – Não sou de encrenca, não.
- ´Stou brincando, justificou Joaquim, rindo.
- Sou porque matei uns sujeitos por aí, ele me chama de pistoleiro.
- Matou? Arregalei os olhos.
- Ele matou uns dois ou três e diz que não tremeu, nem teve dó, comentou Joaquim irônico.
- Ele ´stá querendo passar medo em ´ocê. – Não liga não rapaz, explicou o homem.
- Não estou com medo.
- Eu não caço briga, não, tornou a justificar.
- Sei...
- Ele parou de matar, Thomaz. – é meu melhor amigo.... não precisa ter medo dele, explicou Joaquim. – Por menos por enquanto... arrematou, zombeteiro.
- Mas, o que faz.... vive de quê? Perguntei, enquanto observava-o puxar um pedaço de tronco e sentar-se.
- Sou amansador de cavalo.
- Dos que amansam com brutalidade ou daqueles que preferem amansar o animal com jeito?
- Gosto de amansar com jeito, explicou.
Percebi que o homem queria conversar comigo e então preparei-me para adivinhar as
suas intenções.
- “Ocê que é mais entendido, começou a perguntar, deve saber se é melhor ser crente ou
continuar católico: que acha?
- Eu fui criado pelos crentes, expliquei, meu pai era pastor da igreja Adventista. Deixou a
católica quando eu ainda era criança.
- E então?
- Os crentes também são chamados de Protestantes, continuei, pois não concordam com os
costumes da igreja católica, principalmente sobre adoração de imagens e obediência ao papa.
- Minha mãe era muito carola, comentou Tarso, enquanto cutucava o chão com uma varinha curva. – Meu pai, era um cachaceiro e abandonou a gente logo que eu nasci.
- E aí? Perguntei para incentivá-lo a continuar.
- Minha mãe rezava todo dia para Dez cuidar de nós, mas acho que ele não cuidou nada.
- Porque você pensa assim?
- A gente, eu e meus cinco irmãos, passava fome e vivia em taperas abandonadas lá na Trabucaia. – Eu tinha seis anos e já fui trabalhar pros outros....
- E sua mãe continuava rezando?
- Rezava, acendia velas para Nossa Senhora. Uma vez pegou fogo no altar dela, com as velas, sabe, e queimou a santa junto com a mesinha de madeira e só não pegou fogo toda na casa porque eu e meus irmãos corremos com baldes dágua e apagamos o fogo.
- Foi assustador?
- Foi uma loucura. – Olha, se Deus existe deve ser muito esquisito, não acha?
- Penso assim como você, respondi.
- Ta vendo! Não é só eu que duvida disso, exclamou para os outros ouvirem.
- O Tarso diz que houve a voz dos homens que ele matou, nos sonhos, comentou Joaquim.
- E verdade? perguntei, olhando-o firmemente.
Tarso baixou a cabeça e cutucou o chão, visivelmente angustiado.
- É.
- Isso acontece, repliquei, procurando parecer despreocupado.
- “Ocê acha que é castigo? Deus castiga assim?
- Você não é daqueles que duvidam de Deus? Perguntei tentando forçá-lo a raciocinar com mais profundidade.
- Sou. – Mas tem hora que fico tendo pesadelos pelo que já fiz, comentou sem levantar os olhos.
- Ai acha que Deus pode não proteger, mas consegue castigar.
- É. – “Ocê diz bem. – Acho que Deus é mal.... talvez cruel com a gente.
- Posso dizer uma coisa? Deus pode ser a nossa voz da consciência e só, expliquei.
- Como assim? Levantou os olhos para observar a minha expressão do rosto.
- Sua mãe falava de Deus, dizia que ele castiga quem desobedecia e isso ficou na sua cabeça, quero dizer que você acreditou nisso, no que ela dizia e agora é difícil desacreditar, entende?
- Acho que é isso mesmo, respondeu mais animado.
- “Ocê acha que é muito errado tirar a vida dos outros? Perguntou ansioso.
Fiquei em silencio por um momento, tentando achar as palavras mais apropriadas para não deixá-lo mais confuso ainda.
- Olhe, Tarso, existem muitas situações em que a gente pode tirar a vida de um semelhante.
- Eu também penso assim.
- Tem sujeito que mata por prazer, pra ver o outro morrer aos seus pés. Tem outros que matam pra provar que é o melhor. Ainda outros que matam para defender a própria vida. Por fim , tem os profissionais, aqueles que matam por encomenda; as vezes sentem até piedade pelo coitado, mas precisa fazer o trabalho, não é assim?
- É. – “ocê fala bem.... desanuvia a cabeça da gente, explicou com um suspiro.
- E então?
- O primeiro eu matei pra me defender. – Era um valentão que gostava de desafiar os outros, sabe?
- Conheço esse tipo de gente...
- Eu não fiquei com medo dele.... tive que matar.
- Fez uma coisa justíssima, respondi para incentivá-lo.
- Aí fiquei famoso. – Todo o mundo me cumprimentava, fiquei respeitado.
- Muito interessante.
- Então, o pessoal começou a achar que eu podia ajudar.... acabar com os desafetos, sabe?
- Entendo....
- O cara me ofereceu uma boa paga..... era um serviço simples... foi fácil... precisava de dinheiro.
- Perfeitamente normal, aprovei.
- O outro também.... me pagou um bom pacote. Mas aí, não gostei mais. Fiquei um tempo sumido lá pras bandas da Cabaça Quebrada, trabalhando de lenhador.
- Não queria virar matador, pistoleiro?
- Não. Imaginava que minha mãezinha pudesse ficar sabendo que eu fazia aquilo.... não era bom.
- Sua mãe era muito bondosa?
- Era uma santa. Não roubava nem uma banana dos outros. Era capaz de morrer de fome mas, não pegava nada de ninguém.
- Entendo...
- Ajudava gente, qualquer um.... e era ela que precisa de ajuda.
- Muito bonito....
- Ela morreu naquela época.... nem sei se ficou sabendo do que eu fazia.
- Morreu quando você foi embora?
- É. – Não pude ver o enterro.... foi triste.
- Descansou, pelo menos, expliquei meio sem jeito.
- A vida dela foi sofrida.... disso eu sei, explicou, tentando aliviar o sentimento de culpa.
- Com o tempo a gente dá valor no que perde... comentei apenas para não ficar calado.
- Com certeza. Minha mãe trabalhava pros outros, fazia qualquer coisa, lavava roupa, limpava casa, capinava roça. A gente era criança e ajudava ela. Ela cantava enquanto trabalhava e ficava brava quando a gente brincava no serviço. Mas a gente era muito criança... gostava de brincar.
- Era normal, apartei apenas para reforçar minha compreensão.
- Nunca casei.... vivo sozinho.... é bom.... as vezes é ruim, entende?
- Claro!
- Falei dos crentes....
Ah! Sim. – Conheceu eles?
- É. – Estiveram em minha casinha. Falaram muita coisa bonita. Fiquei contente. Assim, muita conversa bonita.
- Falaram do lado bom do seu Deus?
- Isso! Isso mesmo. “Ocê conhece, né?
- Sei. Mas, o que falaram pra você?
- Que Deus é bom, mas só pra aqueles que lê a bíblia e segue as leis que ta escrita lá.
Mas, eu não sei ler... só posso ficar ouvindo eles falar.
- Compreendo.
- Mas minha cabeça ficou matutanto uma coisa.... minha mãe não lia a bíblia.... também não sabia ler.... só apredeu a rezar.... era devota da Nossa Senhora.
- Mesmo assim Deus não cuidou dela?
- Não sei.... Ela merecia ta no céu.
- Quem sabe?
- Merecia sim.... era muito boa pra todo o mundo.... até pra quem não valia nada.
- Compreendo.
- Falei isso pro crente, sabe?
- Falou?
- Ele ficou quieto.... mudou de assunto.... não gostei disso.
- Mas religião é isso. Cada um acha que tem razão e despreza as práticas religiosas do outro.
- E Deus não é um só? Perguntou me olhando extranhamente.
- É o que dizem.
- “ocê continua crente?
- Continuo, mas do meu jeito. Não sou membro de nenhuma religião em particular.
- Ta vendo como isso é tudo confuso! Exclamou irônico.
- Com certeza.
- Eu sou católico, aproximou-se Pedro Boiadeiro, mas não perco tempo em ir na igreja ouvir o padre. Sigo a minha família.
- Muita gente faz isso, comentei.
- O Tarso ta certo, a mãe dele era uma santa... eu conheci e se algum crente ou católico disser que ela não merece ta no céu... eu não vou acreditar em mais nada.
- É difícil acreditar nos homens, respondi. Cada um fala uma coisa e ninguém se entende.
- Isso é verdade, respondeu Pedro, apontando para o Tarso. – Sua mãe ta no céu... disso pode ter certeza.
- Eu sei.... a vida dela foi de sofrimento e morrer ou foi descanso de tudo ou foi para viver noutra vida só de alegria, comentou Tarso, suspirando.
- É nisso que faz bem acreditar, acrescentei, evitando complicar suas crenças.
O sol estava quase à pino e o calor agradável da beira do rio cercado de mata tornava o ar convidativo ao relaxamento e à despreocupação da vida. Levantei-me.
- Vou continuar meu passeio, expliquei.
- Gostei muito de prosear com “ocê, comentou Tarso, contente.
- Conversaremos mais outro dia, com certeza, respondi.
- Fico contente.
- “Ocê não é crente mas fala bem, acrescentou Pedro, dando um tapinha nas minhas costas, entende das coisas.... “ocê é estudado, não?
- Freqüentei a escola um punhado de anos.
Gosta de ler, né? O povo diz que tem um monte de livro em casa, explicou Joaquim, aproximando com um grande peixe debatendo nas mãos.
- Gosto de ler, sim!- Pescou um belo dourado! Exclamei, admirando o brilho das escamas.
- Esse é dos bons!
- Adorei papear com vocês, mas, vou deixá-los em paz com a pescaria.
- Não ta atrapalhando, não.... explicou Tarso, tocando meu braço com carinho.
- Conversaremos noutra hora, prometo.
Sai pela trilha, convicto de que tivera uma mais que agradável hora de descompromissada
prosa. Nada mais prazeroso do que conhecer o drama de pessoas simples e ao mesmo tempo tão autênticas e sem nenhum verniz de erudição dissimuladora da vida.