quinta-feira, dezembro 17, 2009

O COTIDIANO DO POVOADO

O VILAREJO


Gosto de ir ao povoado de vez em quando. Pela estrada posso cruzar com um cavaleiro disposto a parar sob a sombra de uma árvore e prosear um pouco com a gente. Ele se debruça sobre o arreio e acaricia a crina bem aparada do pescoço do animal e vai contando histórias sem se preocupar com o tempo ou com as eras. Dali a gente pode ver a torre da igreja, caiada de branco recentemente, e além dela as colinas de Orizona. Quando atravesso as primeiras casas, vejo crianças e cachorros brincando pela rua, cumprimento as senhoras que passam com trouxas na cabeça e alcanço a primeira venda. Ali os homens se encontram para tomar um gole e limpar a garganta impregnada de poeira da estrada.
Hoje de manhã fui até a venda comprar querosene e encontrei o Juvêncio que me convidou para ir com ele cortar lenha. O Doutor Joaquim, empresário carvoeiro, o havia contratado para picar 100 metros cúbicos de madeira na fazenda Malacava, no vale do Tinhorão, e precisa de ajudante. Os lenhadores daqui trabalham para as carvoarias, principalmente. Madeira talhada também é vendida para compradores da cidade.
Ainda ontem estive no cerrado cortando lenha para abastecer nosso fogão e pensei comigo o quanto era agradável usar o machado, fazer calos nas mão enquanto a madeira gemia e tombava aos golpes cortantes. O cheiro caracteristico de cada árvore invadia minhas narinas e eu tentava adivinhar o nome e as qualidades de cada uma. Um velho vinhático já morto e bastante seco desafiava minha habilidade em picá-lo, embora não fosse uma madeira tão dura.

A LENHA

Descemos de carroça pela estrada mal feita do cerrado, contornando as pedras e troncos de árvores. Lá em embaixo podia ver o telhado de uma grande casa cercada de mangueiras e currais. Passamos por uma porteira de arame e começamos a ver montes de madeira amontoados na beira da estrada. Paramos junto ao rancho de palha usado pelos lenhadores para acamparem. Não tinha portas e toda a frente era aberta. No canto direito havia um fogão improvisado de pedra e barro; do outro lado, um giráu de paus roliços, que servia de mesa ou prateleira. Por todos os lados havia árvores tombadas e já secas, centenas delas. Perguntei ao Juvêncio quem tinha derrubado as árvores; respondeu que os empregados da fazendo vinham dois ou três meses antes e derrubavam as árvores e só depois é que a gente podia vir e picar os troncos em pedaços de um metro, partir os mais grossos em quatro partes, e deixá-los prontos para serem levados pelos caminhões. Fui até o tronco mais próximo que estava caído sobre outro já velho e apodrecido. Comecei a cortar pela parte mais fina. A árvore tinha, na base, uns cinquenta centímetros de diâmetro. O machado penetrava na madeira e tirava lascas cheirosas, enquanto o som corria pelo campo e ecoava no vale. Juvêncio era muito mais hábil que eu e, no fim da tarde, havia cortado mais que o dobro de lenha.
No início da noite, voltamos para o povoado, cansados e famintos. Deixei Juvêncio na venda do Osório e segui para casa. Meus braços e as palmas das mãos estavam doloridos. Desejava apenas tomar banho, comer e descansar.

quarta-feira, novembro 25, 2009

AS DESPREOCUPAÇÕES DO DOMINGO

Abel Aquino


Naquela manhã Juvenal acordou com vontade de se vestir bem e passar o dia limpo, perfumado e feliz. Ele não era de tomar banho toda semana, muito menos todo dia. Banho era para ocasiões especiais, tais como casamentos, festas religiosas ou reuniões políticas. Eram acontecimentos raros e espaçados.Mas naquela manhã, um domingo como qualquer outro - quando as pessoas se arrumam e vão à missa das sete e depois visitam os parentes e amigos para por a conversa em dia - Juvenal queria tomar um belo banho e vestir o melhor par de roupas que tinha. Saiu do quarto disposto e cheio de energia. Na cozinha, encontrou sua mãe acendendo o fogo para preparar o café da manhã.
Embora ninguém fosse trabalhar, havia serviços que tem que ser feitos todos os dias. Reunir o gado no curral e tirar o leite era um deles. Juvenal lavou o rosto na bica, pegou as cordas, o balde e foi em direção do curral. Depois de tirar o leite, colocou a maior parte dele para coalhar e foi tomar seu banho. Pegou água da bica com um enorme balde metálico e seguiu em direção do banheiro. Fechou a porta tirou a roupa e, com uma caneca, pegou água do balde e jogou na cabeça. A primeira água parecia gelada demais e Juvenal deu um grito. Depois acostumou com a água, ensaboou o os membros e o tronco, jogou mais água sobre a cabeça até remover todo o sabão, pegou a toalha e secou o corpo.
Depois enrolou a toalha na cintura, abriu a porta do banheiro e foi em direção da casa para por a roupa nova.
Sentiu o cheiro de café que sua velha mãe preparava. Segui para a cozinha penteando o cabelo, pegou uma xícara e estendeu para sua mãe. Esta pegou o bule e entornou café na xícara que Juvenal segurava.
- ´Stá cheiroso, hoje, filho! Vai comigo à missa?
- Não mãe, deteste ouvir o padre rezar, mas quero passar o dia limpo e perfumado.
- Vai visitar alguém?
- Não.
- ´Ocê precisa arrumar uma namorada, filho.
- Não tenho pressa mãe.
- Eu não vou viver por muito tempo, logo vou acompanhar seu pai.
- Há! Mãe! Não fala bobagem!
- Mas essa é a vida, filho.
- Não se preocupe, mãe, vou me casar assim que achar uma mulher do meu agrado.
- É bom, filho, concluiu a mãe, saindo para o quarto.
Juvenal pegou um pedaço de fumo e foi para fora em direção do paiol. Abriu a pesada porta do paiol e pegou uma espiga de milho seca, destacou uma meia dúzia de palhas e foi sentar na varanda da casa. Calmamente, recortou a palha, dobrou e colocou debaixo da perna. Pegou o fumo e com o canivete foi destacando rodelas finas, esmagando-as na palma da mão. Depois de cortar um punhado de fumo, soltou o canivete, pegou uma palha, abriu-a com a boca, fez uma meia cana e colocou o fumo. Enrolou lentamente. No final passou a língua sobre a borda da palha e fechou o cigarro. Levou o cigarro à boca , pegou a binga de cobre, puxou a tampa, deslizou o dedo sobre o mecanismo de faísca e apertou. Acendeu o cigarro e se encostou na parede, olhando, pensativo, para o horizonte, alem da cerca, por cima das árvores do sopé da montanha. Sua mãe saiu pela porta da frente, arrumada e com uma sombrinha colorida. Juvenal sabia que ela ia para a igreja assistir a missa. Olhou indiferente e vago. Ela disse qualquer coisa como se sair não esqueça de fechar a casa e foi andando em seus passos miúdos.
A estrada era longa e reta, ladeada de capim e marcada pelas rodas dos carros de boi e das carroças. Ficou olhando sua mãe afastar lentamente, Alcançar a porteira, abrindo-a com esforço, e desaparecer na curva do caminho.
Juvenal ficou imaginando vê-la chegar ao povoado - mais de quilômetro dali - encontrar os parentes e amigos, o velho Ribaldo, a senhora Clementina e seu cadela magra, o farmacêutico Ernesto e seu enorme relógio de bolso, preso ao cinto por uma bela corrente de prata. Antes de entrar na igreja falariam das mesmas coisas, comentariam os mesmos acontecimentos e discutiríam o grau de honestidade de cada habitante das redondezas.
Juvenal estava feliz por não ir à missa. A solidão era melhor. Nada substituía a sensação de alargamento, de céu aberto e de sossego num domingo sem ir à roça, com pouca coisa para fazer. Não trocaria isso pelo passeio à vila, à igreja com cheiro de vela queimada e repleta de gente vazia e vulgar. Tragou a fumaça do cigarro de palha, prendeu a respiração por alguns segundos e soltou o ar devagar, fazendo uma pequena nuvem a sua frente. O sol brilhava sobre o pasto ondulado e o gado descansava à sombra das árvores. Suspirou em paz e sorriu consigo mesmo.

segunda-feira, setembro 28, 2009

SOBRE ESMOLAS E DESTINO

Abel Aquino

Uma mulher pedia esmola na esquina, sentada num caixote de madeira e o braço estendido, com um prato metálico na mão. Falava alguma coisa ininteligível e olhava para todo transeunte que se aproximava. Duas crianças brincavam ao seu lado, indiferentes ao que a mãe fazia. A menina usava um vestido amarelo, sujo e amarrotado. O menino, de calça curta, vestia uma camiseta cinza, rasgada.
Parei na porta da loja e fiquei observando o comportamento da mulher. Ela agitava a vasilha e as poucas moedas que tinha, tilintavam. O barulho chamava a atenção das pessoas que passavam por perto. Um senhor bem vestido, mas sem aparência de abonado, aproximou-se de mim e puxou conversa.
Você acha certo dar esmola para uma pessoa assim?
Depende, respondi.
O que precisa mesmo é alguém pegar ela e os filhos e levar pra trabalhar.
E se ela não gostar da idéia?
Então, que morra de fome.
E se ela conseguir mais esmola que se trabalhasse?
Isso é que é errado. Dar esmola não é solução pra nada. É incentivo a vagabundagem. O certo é ter um jeito de tirar ela dessa vida que leva.
Mas quem vai poder fazer isso?
Pode ser o governo.... a gente não paga imposto pra isso?.... pro governo cuidar dos pobres?
Mas os políticos pensam nisso? Perguntei sorrindo, meio zombeteiro.
Ai que ´tá, respondeu o estranho. – quem vai obrigar o governo a fazer isso!?
A gente dá esmola para parecer que já fez a sua parte, falei provocativamente.
Eu não dou e não sinto remorso disso, declarou convicto.
Não tem dó das crianças?
Essas crianças estão aí pra fazer a gente sentir dó, mesmo. Eu não caio nessa!
Acredito que a intenção dela é essa mesma, mas, não é normal ver pessoas pedindo esmola numa esquina.
Normal não é, e não é culpa minha, deu de ombro.
Nem minha. Mas, não existe uma forma de evitar que um certo número de pessoas permaneça tão pobre que precise pedir esmola?
Existir, existe; bastava acabar com a preguiça dessa gente.
Você acha que isso é resultado da preguiça?
Em parte é. Eu nasci pelado, sem dente, não sabia andar nem falar, não recebi herança, não fui ajudando por meu pai e não reclamo da vida nem preciso dos outros pra viver. Não sou rico, mas fiz meu pé de meia, trabalhando duro.
Essa é a história de muita gente, respondi enquanto estudava a aparência do homem.
Pobreza é castigo de Deus.
Como assim?
Deus dá as mãos e as pernas, a inteligência e o mundo pra gente se virar. Quem não é aleijado não tem desculpa de viver na miséria.
Lá isso é verdade.
Tem mais: quem tem coragem não passa necessidade.
Também concordo.
O homem estava se empolgando. Falava mais alto e gesticulava, olhando para o meio da rua como que para impressionar uma platéia imaginária.
O problema da pobreza é que ninguém liga pro pobre, nem a igreja católica, nem a sociedade, nem os ricos, nem os políticos.
É, são marginalizados.
Mais do que isso. - São a sobra, não fazem parte de clubes, de famílias. – Pode ver: todo pobre é meio só no mundo, perdeu contato com a maioria dos familiares.
É triste.
Vamos fazer o que? O desconhecido olhou mais uma vez para a mulher sentada na calçada, agitando a latinha com moedas. – Falo uma coisa: ninguém dá jeito nisso, não. Estava desanimado.
Podemos cobrar dos políticos, da prefeitura. – Não é obrigação deles recolher e alimentar esses mendigos? Perguntei.
Recolhe um, aprece dois, deu de ombro e saiu rua abaixo.
Tchau!
Caminhei na direção oposta, passando em frente da mulher e seus filhos. Uma velhinha parou, abriu sua bolsa, tirou uma moeda e colocou na latinha. A mendiga agradeceu, desejando as bênçãos de Deus.

sexta-feira, julho 24, 2009

UM CORPO NA ÁGUA

Abel Aquino

Todo mundo tinha medo da correnteza naquele ponto do rio. As margens ficavam estreitas e as pedras negras e sempre molhadas da margem empurravam a água turva para o meio, onde ela rodopiava encrespada e descia velozmente por mais de cem braças até encontrar o remanço.
Marcilio parou sua montaria junto ao barranco e ficou, por alguns minutos, observando a corredeira. De vez em quando o sol brilhava na barriga prateada de peixes que desciam saltitando por entre as pedras.
De repente viu o corpo de uma pessoa rodando pela correnteza, de bruço, com sua roupa rasgada e balouçando nos movimentos da água. Por um momento Marcilio acompanhou o corpo, fustigando o cavalo e percorrendo a margem do rio, mas logo adiante o mato impedia a passagem e teve que afastar. Contornou o mato e, metros a frente, voltou a se aproximar da margem. Percrustou a água mais não viu mais o corpo.
Resolveu voltar para casa. Depois de espalhar a noticia rapidamente uma duzia de homens curiosos desceu em direção do rio para ajudar Marcilio a procurar o corpo. Ficaram a tarde toda percorrendo as margens acidentadas mas não encontraram nada. Marcilio ia a frente com o facão na mão, abrindo caminho no capim alto do brejo.
Depois de duas horas de procura começaram a duvidar da história.
Marcilio, ´ocê deve Ter visto coisa demais, disse Fúlvio, duvidando.
Não sou maluco, sô, respondeu Marcilio. – Vi muito bem! Era um defunto, boiando na água, sim!
Então, deveria ´tá parado nesse remanso, agumentou Crispim.
Era um defunto,sim! Repetiu Marcilio, já impaciente.
Eu não vou procurar mais, não, concluiu Fúlvio. – Logo escurece e a gente não pode ficar aqui para ser picado por cobra nesse matagal besta.
A gente pode não achar o corpo, justificou Marcilio. – mas que eu vi, eu vi.
Voltaram para suas casas, conversando, uns, achando que o rapaz estava maluco, outros, dizendo que poderia até ser verdade, mas faltava o corpo para tirar toda dúvida. Marcilio ficou alguns passos para trás, resmungando. Sabia que aquilo iria virar motivo de chacota, mas estava confuso. Olhou para trás ouviu o barulho da correnteza e pensou: será que me enganei?

terça-feira, junho 23, 2009

NO FRIO DO ASFALTO
Abel Aquino
Pare de fumar, Alice, ordenava o marido, mal humorado.
Fumo quanto quiser, retrucou a mulher, caminhando para a janela aberta.
Odeio fumaça de cigarro, continuou o homem.
´Tô cheio de você, de todo o mundo!
Você é muito ingrata, isso sim, concluiu o marido.
Alice acendeu o cigarro, olhou pela janela e deu uma baforada. Pensou consigo mesma:
por que tudo dá errado pra mim?
Ouvia a vizinha gritando com o filho, um enorme caminhão subindo a rua, cães latindo, vozes de rádio; sua cabeça doía, suas pernas formigavam. Um enorme rato correu junto ao muro, em direção dos fundos do quintal. Alice jogou a bituca e acendeu outro cigarro. Sentia-se o pior dos seres humanos. O marido, com aquele ar despreocupado e sorriso zombeteiro, deixava-a transtornada. Não tinha vontade de reclamar, de exigir, de protestar. Desejava apenas alimentar-se do próprio veneno. A vizinha continuava a gritar com o filho e com o marido. Mas, isso não tinha importância. A vida era uma loucura, o amor, um punhal que servia para perfurar, para dilacerar.
Alice queria se revoltar, procurar forças para jogar tudo para o alto, bater na cara do marido e xingar a vizinha que só reclamava da vida. Mas, não, permanecia calada e olhando pela janela. Pensou na mãe, naquilo que chamam de família. Não seria ingênua de acreditar em ajuda de família. Era adulta e, se enfrentava problemas, os outros também estariam enrolados em seus próprios problemas. Sua irmã a chamava de desmiolada, seu irmão a considerava uma puta. Definitivamente, família era para se manter distante.
O marido levantou do sofá e foi para a cozinha procurar comida. Alice ouviu-o abrindo panelas e batendo pratos. Lembrou que casara para deixar de ser mal afamada, para conquistar respeito da família e da vizinhança. Quanta ingenuidade!
Afastou-se da janela e foi ao quarto, abriu o guarda-roupa e retirou algumas peças de vestidos, calças e blusas. Pegou a mala, jogou tudo dentro, e saiu para a rua. Trancou a porta, jogou a chave por baixo, e caminhou pela calçada mal iluminada. A noite estava quente e não soprava nenhum vento. As poucas luminárias públicas acesas lançavam luzes amarelas em círculos no meio da escuridão.
Alice não tinha pressa, nem sabia qual destino tomar. Apenas caminhava pela longa e solitária rua da meia-noite. De repente, ouviu passos atrás de si. Sentiu medo e andou mais depressa. Quase corria, mas o estranho ruído de passos apressados continuava. O pavor foi tomando conta de seu corpo. A mala começou a pesar, suas pernas tremiam, e, os passos atrás de si, persistiam. Não tinha coragem de voltar a cabeça e olhar. Queria correr, mas, não tinha forças.
Um gato malhado saltou a sua frente, pulou o muro do outro lado e desaparece na escuridão. O susto acelerou ainda mais o coração palpitante. Estava ofegante. Ao chegar à avenida, viu, do outro lado, uma porta de bar aberta, viu luzes e ouviu vozes. Atravessou sem perceber que um carro se aproximava em alta velocidade. Ruído de pneus travados, faróis piscando e uma pancada seca. O corpo voou no ar, deu uma volta sobre si mesmo e estatelou no chão, imóvel. Logo,curiosos se aproximaram, janelas foram abertas e rostos surgiram com olhos compridos. Mais tarde, ouvia-se as sirenes da ambulância, afastando.
No dia seguinte, no chão frio do asfalto da avenida, amanheceu apenas uma mancha vermelha.

sexta-feira, junho 05, 2009

UMA HISTÓRIA EM DIA DE CHUVA


Abel Aquino


Era uma tarde chuvosa e fria. No pátio da enorme obra em construção, os pesados caminhões espalhavam a lama pegajosa e a enxurrada desmanchava os montes de areia. Os trabalhadores que precisavam fazer serviços do lado de fora estavam sentados no chão, debaixo da cobertura provisória.
Brito, o encarregado civil, fumava tranqüilamente, recostado no pilar e olhando para o pátio, pensativo. Cheguei até ele e puxei conversa.
- Brito, hoje vai ser um dia perdido, não?
- Poxa! Se vai!
- O Severino já sarou? Vi que ele veio trabalhar hoje.
- Já. Está ainda meio fraco; dei pouco serviço pra ele.
- Você estava preocupado com ele, continuei.
- É! Gosto desse menino; mas é muito desorientado, só no mundo.
- A família está espalhada por todo canto.
- A família é grande, mas cada um foi prum lado.
- Você esteve onde ele mora, é ruim o lugar?
- Muito! É um fundo de casa, perto do córrego - construção de tabua - uma favela.
- Não quer ficar no alojamento da obra?
- Não. Prefere ficar onde está. – Aqui, no alojamento, corre muita bebida e não tem jeito - já falei com o Engenheiro para reforçar a vigilância, mas tudo continua como está. – Severino tem um fraco pela bebida e fica bêbado com pouca coisa.
A chuva não dava trégua. A água penetrava pelas partes em construção ainda descobertas e descia por entre as formas de concreto, molhava as escoras de madeira e lavava as escadas incompletas. Severino vinha caminhando em nossa direção, carregando um balde no ombro. O capacete de proteção estava enlameado, seu uniforme com manchas de barro. Caminhava, sem pressa, desviando das pilhas de tijolos, pulando por cima das resmas de caibros e dos montes de pedra britada.
A história desse rapaz era comovente. Corria até uma anedota de que tudo que é ruim no mundo cai na sua cabeça. Já se perdeu em São Paulo e passou a noite dormindo na rua; já foi preso por engano; levou um surra de uma turma de desordeiro; teve uma namorada que o abandonou por outro; o pai morreu e a mãe ficou louca; seus irmãos viviam cada um em uma cidade diferente e ninguém sabia o endereço de ninguém.
Brito cuidava dele quase como se fosse um filho. Vi muitas vezes os dois conversando; Severino ouvindo os conselhos e movendo afirmativamente a cabeça.
Havia faltado no trabalho, três dias, pois tivera uma gripe muito forte. Mas estava de volta.
Aproximou-se, sorriu levemente para mim, e perguntou ao Brito onde deixaria o balde de impermeabilizante.
- Deixe no almoxarifado; não vou precisar mais disso, hoje.
O rapaz afastou-se e eu perguntei:
- Ele já arrumou outra namorada?
- Creio que não. Ele gosta de ir ao puteiro da Juanízia e lá tem uma moreninha que adora arrancar dinheiro dele, coitado.
- E ele não se queixa disso?
- Ela faz uns carinhos, leva pra cama e ele fica extremamente generoso.
- Limpa ele?
- Pior que limpa! Na última vez que recebeu o salário, obriguei-o a me dar três partes do que recebera e saísse só com o necessário para tomar uma cerveja e deitar meia hora com a safada.
- Concordou?
- Não deixei escolha. No outro dia devolvi o dinheiro e falei para que procurasse pagar as dívidas.
- O que disse?
- Ficou agradecido; ele sabe que não pode gastar o salário do jeito que gasta, mas não tem juízo.
O engenheiro apareceu e chamou Brito que o seguiu pelo pátio, debaixo da chuva. Fiquei por alguns minutos parado, ali,olhando a movimentação, os trabalhadores carregando madeira, acionando os guinchos, empurrando carrinhos de massa de cimento. Uma meia dúzia de pessoas continuava sentada no chão, conversando. Dois deles sentaram numa pilha de blocos de concreto e examinavam um pequeno rádio.
No final da tarde, Brito apareceu no meu improvisado escritório e convidou-me para irmos à lotérica fazer uma fezinha.
Saímos em direção do portão principal. A chuva havia cessado e apenas a lama permanecia no pátio, sujando as botas dos que transitavam por ali. Na saída, encontramos o Severino que perguntou aonde íamos. Resolveu nos acompanhar e também fazer o seu joguinho preferido.
Dois dias depois vi o Brito, caminhando sorridente. Parou à minha frente.
- Adivinhe o que aconteceu?
- Não!
- O Severino ganhou na loteria!
- Verdade?!
- Sim! Foi ao banco sacar parte do dinheiro.
- Quanto ganhou?
- Ganhou 200 milhões de cruzeiros!
- É. Dá pra comprar um bom apartamento de classe média, comentei.
- Vai me dar dez por cento, porque diz que eu é que dei sorte pra ele.
- Deixe de ser fominha, Brito. Deixe ele com a grana.
- Que é isso! ´Tá falando em dar dinheiro até pra a moreninha do puteiro, justificou.
- Ele vai embora, então?
- Vai. Quer pedir a conta e ir pro nordeste, cuidar da mãe que é doente.
- Mas, não é muito dinheiro; se sair gastando, não vai durar nada.

Depois dessa conversa, não vi mais o Brito por uns dois meses. Quando voltei à obra, esta já estava em fase final, com pintores e maquinas de limpeza trabalhando a todo o vapor.
Brito estava almoçando no refeitório, acompanhado pelos outros encarregados. Quando me viu, chamou.
- Como está? Perguntei.
- Estamos bem, e ócê?
- Estou bem. Tem noticia do Severino?
- ´Tá na terra dele, cuidando da mãe; comprou uma casa na cidade, um carro e diz que vai trabalhar de chofer de madame.
- Espalhou muito dinheiro por aí?
- Um pouco, mas foi esperto - até me surpreendi – não procurou nenhum irmão. Pra putinha deu uma boa grana que a deixou toda feliz.
- Acho que a sua fase de azar acabou; que ele não precise nunca mais voltar para cá, comentei.
Despedi-me do pessoal, dei um abraço no Brito, desejando-lhe boa sorte e me afastei em direção do pátio do estacionamento. Suspirei contente, sem saber porque. Talvez por continuar vivo e ter grandes amigos.

terça-feira, maio 12, 2009

DESPENHADEIRO


Justino gostava de passear com seu cão, Plato. Saia pela campina, seguindo as trilha do gado para apreciar o dilatado horizonte. Isso dava uma sensação de liberdade e amplitude e sentia que poderia conquistar muitas coisas. Seu cão corria à frente, parava, olhava para trás, balançava o rabo e ficava esperando Justino se aproximar. Depois corria mais um pouco, perseguia uma nhambu que ciscava debaixo do capim. Esta voava para longe e Plato desistia de persegui-la. Os passarinhos, no alto das árvores mais desfolhadas, saltitavam de galho eM galho, chilreando e batendo as asas. Justino tentava adivinhar que espécie poderia ser os de penacho amarelo, os outros de peito branco e, ainda, os de rabo longo e azul.

O dia estava limpo e o sol quente era abrandado pelo vento fresco do fim do verão. Andavam, agora, por uma região que Justino não conhecia. Enormes lajedos levantavam por entre árvores retorcidas e pedras meio arredondadas apareciam soltas na partes planas, despregadas que foram do alto da serrania.Plato correu atrás de uma codorna e Justino viu quando desapareceu à frente, ganindo de forma estranha. Justino correu e, quando viu a fenda, já era tarde. Seus pés escorregaram na laje lisa e o corpo alcançou o espaço e caiu. A fenda tinha mais de dez metros de profundidade. Seu corpo alcançou o fundo com um baque curto e segui-se o silêncio.

Uma semana depois encontraram os corpos, do animal e de Justino, lado a lado. Estavam cercados de abutres. Sobravam mais ossos que carne. Por entre as costelas de homem e do cão, movimentavam-se vermes e estes passavam de uma carcaça à outra. Lívio foi o primeiro a ver aquela cena e, imediatamente lhe ocorreu a pergunta: será que o homem e o animal são da mesma natureza?. Estavam alí desmanchando-se em podridão, vermes e pedaços de carne picotados pelos bicos afiados dos abutres.

Maria ficou sabendo da morte do marido com pavor e gritos. Chorou três dias sem cessar. Deram-lhe calmante todos aquele tempo. Por fim, já conseguia dormir sem remédio. Mas, sempre sonhava com o marido voltando para casa. Abria a porta e o via chegando, balançando o corpo de seu jeito peculiar, sorrindo. Passava para o quarto e a abraçava. Maria perguntava: - mas, você não morreu?. Justino dizia, sempre sorrindo, não morri, olhe para mim, tenho cara de morto? Cheire-me. E ela o cheirava e sentia aquele suor de homem que tanto a excitava.
Mas, ao acordar, via a cama vazia, sentia a solidão da casa solitária, sem a voz grave e sempre calma de seu amado companheiro e chorava de novo.
Porque ele aparece em meu sonho? Será que quer dizer alguma coisa pra mim?.
O padre dizia que era sua alma, tentando reconfortá-la. Mas, tendo toda noite sonhos desse tipo, Maria sabia que seu sofrimento nunca poderia acabar.

domingo, maio 03, 2009

A CURVA DO TEMPO



Recolhi os remos do barco.
Fui com a correnteza das coisas,
Com o flutuar da isca sem consciência
E o deslizar da noite enluarada.
Vi as estrelas acima das pontas da serra,
O olhar aberto – a mente vazia,
O corpo apoiado nas bagagens
E a canoa escorregando pelo rio.

Sou o pescador das idéias etéreas,
Ouvindo o rõim, rõim dos batráquios,
O cri, cri dos grilos e o tic,tac do relógio.
Meu barco esbarra na pedra irregular,
O remo apóia no barranco e empurra,
Enquanto o barrulho das águas
Denuncia a forma negra do obstáculo
E desperta o espírito distraído e morno.

Desejo abrir a mochila de lona
Encostar o bote na margem arenosa
E ler meu livro em voz alta.
Mas o espírito sem luz e a noite brumosa
lança meu desejo na marola escura
e leva o choro do mandi fisgado.
Só vou assar minhas traíras na primeira manhã
Pouco importando com ouros e lembranças,

Esquecido do lugar nas curvas dos anos!
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terça-feira, março 31, 2009

POÇO ABANDONADO

O cavaleiro vinha pelo pasto no meio da chuva. Evitava a estradinha porque por ali descia uma enxurrada violenta. Contornou a cerca, que ficava ao lado do capinzal, puxando a rédea com cuidado para que o cavalo não escorregasse. O chapéu de abas largas estava encharcado e vertia água pelas extremidades.
A longa capa cinza escura protegia seu corpo da chuva e, amarrada no pescoço, rodeava todo o corpo e cobria até as ancas do animal. Era o Sebastião, irmão do proprietário da fazenda. Acompanhei de longe, com o olhar, as passadas curtas do cavalo pelo pasto, aproximando próximo à linha da cerca de arame farpado.Eu estava sob a cobertura do paiol de milho e da doca do carro de boi.
De repente a montaria e seu cavaleiro sumiram diante de meus olhos. Gritei assustado. Vi que do canto da casa o Jacinto corria na direção do local onde o cavaleiro desaparecera. Sai na chuva também e rumei para lá. Na extremidade do pasto, quase no cruzamento da cerca de arame com a cerca de madeira, vimos, primeiro as orelhas e o focinho do animal e abaixo, abraçado ao seu pescoço, o cavaleiro, desesperado, nos gritava por socorro. Compreendi que haviam caído num poço abandonado, coberto de madeira e terra e que cedera com a chuva e o peso do cavalo. Os olhos do animal pareciam saltar para fora, suas ventas sopravam dilatadas e trêmulas. Por sorte o animal caíra com as ancas para baixo e as patas dianteira estavam estendidas para cima, quase tocando as bordas do poço. Tínhamos que fazer alguma coisa. Jacinto correu de volta para a casa sem dizer nada.
Deitei-me ao solo e tentei esticar o braço para alcançar a mão do Sebastião, o cavaleiro, mas, quando ele soltou um dos braços que o seguravam agarrado ao animal, quase escapou e por pouco não escorregou para mais baixo, onde fatalmente seria esmagado pelo corpo do cavalo. Este estava desesperado; agitava as patas traseiras, vergava o lombo e arranhava a borda do buraco com as patas dianteiras na tentativa de se erguer. Sebastião permanecia agarrado ao pescoço do cavalo e sentia que com qualquer descuido cairia para o fundo e seria esmagado.
Jacinto surgiu com uma corda e com o laço de couro cru. Dois outros homens o acompanhavam . Eram o Dico e o Osvaldão, os peões da fazenda. Jacinto lançou a corda e Sebastião, fez um grande esforço para segurá-la com uma das mãos mas tinha medo de escorregar. A ponta de corda desceu por entre seus braços e encostou no peito. Gritei para que abrisse as pernas e apoiasse no barranco, mantendo o corpo colado ao animal e assim poderia soltar as mãos e agarrar a corda. Foi o que fez. Juntamos todos os quatro homens e puxamos a corda lentamente. Essa penetrou na beira enlameada do poço e afundou, tornando muito pesado puxar. Sebastião ficou suspenso no ar tocando as botas no lombo do cavalo mas nós não conseguíamos puxar mais. Falei para os outros aguentarem o peso, mantendo a corda esticada, enquanto eu deitava no barro e puxava a corda abaixo do barranco. Conseguimos puxar mais um metro e as mãos do cavaleiro ficaram ao meu alcance. Agarrei seus pulsos e gritei para que enfiasse as pontas da bota na beira do poço e impulsionasse para cima. Com dois trancos consegui tirá-lo para fora. O cavalo, vendo seu dono na margem, ficou extremamente agitado; relinchava desesperadamente e cavava, com as patas dianteiras, o canto do poço, mas, com isso, só conseguia afundar-se mais ainda. O barro que caíra, já estava prendendo suas patas traseiras no fundo do poço. Jacinto preparou o laço. Olhei para ele; a água escorria pelo furo do velho chapéu de palha, sua roupa encharcada revelava um corpo musculoso e forte apesar de seus quase sessenta anos. Quando ia jogar o laço no pescoço do cavalo soterrado, avisei: - Jacinto isso não vai dar certo.
Também acho, respondeu ele. – só vou enforcar o pobre animal, concluiu.
Temos que pensar noutra coisa, argumentei. – podemos tentar amarrar a corda abaixo das ancas dianteiras.
E, se cavarmos a beirada, fazendo uma rampa, vai facilitar o arrasto, pensou em voz alta.
É uma boa idéia, respondi.
Dico, corre ao galpão e traga enxada, pá e enxadão para abrirmos uma vala na frente do animal.
Enquanto Dico buscava as ferramentas, jogamos a corda ao fundo do poço e, com uma vara, tentei fazê-la sair do outro lado do corpo do animal, mas não consegui. Achei melhor fazermos uma laçada na ponta da corda e enroscar nela a vara. Depois de duas tentativas consegui contornar o corpo do animal e deixei a laçada do outro lado. Desprendi a vara, enfiei-a pelo outro lado e fiquei tentando pescar a laçada da corda no fundo do poço, acima das patas traseiras. Só parte das coxas estavam fora da lama e, na tentativa de pescar a laçada esta afundou na lama e eu não conseguia vê-la. A chuva parecia mais forte e trovões ribombavam na serra. Os relâmpagos cortavam os céus pesados de nuvens cinzentas. A água corria pelo meu rosto, e embaçava minhas vistas. Dico chegou e imediatamente começaram a cavar a vala no rumo das patas dianteiras do cavalo. Este olhava com seus olhos esbugalhados e cheios da água da chuva, relinchava como que entendendo o esforço que fazíamos para tirá-lo dali. Quando Dico cansou, Osvaldão pegou na enxada e começou a puxar a terra, agora mais lama que terra. Uma leve enxurrada começou a fluir para dentro do buraco. Jacinto gritava: - vamos rápido com isso que a chuva vai encher o poço de água logo, logo. Eu peguei a pá e comecei a colher o barro e jogava para mais distante e à frente da vala para evitar que a lama escorresse para dentro.
Sebastião estava sentado num tronco caído e olhava tudo com ar distante e perdido. Sua capa enlameada de barro vermelho estava rasgada e rota. Osvaldão alcançou rapidamente a altura das patas do cavalo e o enxadão era manuseado com cuidado para não ferir-lo.
A vala estava com um metro de profundidade junto ao poço e subia em forma de rampa até dois metros adiante.
Tentei novamente pescar a corda que estava enterrada na lama no fundo do poço.
Com a vara, fui apalpando até encontrar a laçada da corda. Com cuidado, fui puxando e consegui trazê-la até a borda. Jacinto pegou numa das pontas e eu peguei na outra, passei a ponta pela laçada e puxamos cuidadosamente a corda de forma a ir escorregando no corpo do animal até fechar em torno das ancas dianteiras. Amarrei outro pedaço de corda no meio da primeira e conseguimos ter dois pegas para puxar. Jacinto laçou o pescoço do animal com o laço de couro cru e começou ao puxar. Eu e Sebastião pegamos numa punta da corda, Dico e Osvaldão na outra, e começamos a puxar. O cavalo esperneou, relinchou, mas não se moveu do lugar.
Tive a idéia de deixarmos a água correr para dentro do poço e com isso o animal poderia flutuar e sair mais fácil. Todos concordaram comigo. Nessa hora, um ar de desânimo já se estampava no rosto de cada um deles. Quando a água subiu até o pescoço, voltamos a esticar as cordas e o laço. Desta vez o cavalo conseguiu soltar as patas traseiras da lama e seu corpo flutuou. Puxamos mais uma vez e ele conseguiu ajudar com as patas dianteiras e avançou pela vala até firmar as patas traseiras. Nesse momento afrouxamos as cordas e o cavalo saltou para frente e alcançou a terra firme. Relinchou como que agradecido e Sebastião foi fazer um carinho no seu pescoço.
Seguimos para dentro da casa, debaixo da chuva que não dava trégua, cansados, enlameados, mas contentes. Sebastião vinha logo atrás, trazendo seu animal no cabresto, em direção do estábulo. A capa de chuva ficara enroscada na cerca e ele não se importou em recolhê-la.

terça-feira, março 10, 2009

A DOR E A TEMPESTADE



Abel Aquino

Agachei na beira do rio e fiquei olhando o movimento das águas. O enorme galho de uma árvore caída na margem riscava a superfície, enquanto um martim pescador trocava de lugar sobre o lajedo do lado oposto.
Fiquei angustiado com o pressentimento de que haveria grandes mudanças no tempo. Nuvens escuras surgiam lentamente no horizonte. Precisava ficar forte e não me deixar tomar pela emoção. Procurá-la seria um risco que não tinha intenção de correr. Com certeza, era um rompimento definitivo.
Teria que procurar outros ares, ver outros sorrisos, sentir outros perfumes. Mas quem teria aquele jeito de afastar os cabelos do rosto e de pender levemente a cabeça?
Seus olhos, nesses momentos, me encaravam com coragem e eu estremecia. Sua voz era cheia de calor e sensualidade natural. Mas eu sentia que seu coração não batia tanto por mim. Era uma relação precária.
Deitei sobre a pedra da margem do rio. O vento soprava e as folhas das árvores mais altas despregavam e caiam sobre as águas. Flutuavam como barcos e desciam numa corrida, seguindo a correnteza, umas tocando nas outras, rodopiando e balançando. Vi a libélula pousar na superfície do rio e imediatamente um peixe saltou fora dágua e a levou para o fundo. Seu dorso cinza brilhou por um instante aos raios do sol que passavam pela folhagem das pindaíbas.
As nuvens ficavam cada vez mais pesadas e escuras. O vento aumentava.
Levantei e segui pela trilha em direção da estrada. Um carro passava naquele momento e a poeira vermelha levantou-se em redemoinhos e afastou por cima das árvores. Caminhei pela estrada sem pressa.
Gostaria de tomar aquela chuva que avizinhava, de ouvir relâmpagos explodindo na serra e ver raios cortando as nuvens com fúria. Queria ver o vento arrancando árvores, quebrando galhos e lançando folhas em todas as direções. A chuva poderia cair como cachoeira, inundar o vale, arrancar tocos pela raiz, encher o rio e passar por cima da ponte. Desejei estar no meio da tempestade mais violenta que jamais vira, ser jogado ao chão e enlamear minha roupa, ficar surdo com os trovões sobre minha cabeça.
Quando senti os primeiros e grossos pingos da chuva, imaginei lavando minha alma, esfriando a cabeça, a água escorrendo pelas costas. Ficaria aliviado da angustia da perda, da dor do abandono.

sexta-feira, fevereiro 27, 2009

O JANTAR E A ESPERA

Abel Aquino

Maria estava contente. Havia encontrado Camilo na casa da Joana. Este estava muito alegre e conversador, o que não era comum. Maria aproveitou para aproximar-se dele e a seu lado pode trocar elogios e gracejos. Camilo nunca a olhara daquele jeito, intenso, penetrante e sempre com leve sorriso nos lábios.
Na verdade a paixão de Maria por aquele homem surgira com a indiferença com que deitava olhares nela. Maria era muito bonita, corpo forte, alta, morena clara, cabelos longos e brilhantes. Todos os rapazes do povoado a cortejavam. Mas Camilo não. Isso enlouqueceu Maria; a imagem viril do homem, seu ar orgulhoso e displicente não saia da sua cabeça.
Com muito cuidado Maria aproveitou a intimidade para convidá-lo a ir jantar na sua casa.
- Posso preparar um jantar especial para você, concluiu ela.
- Hoje não posso, desculpou-se Camilo. – mas amanhã vou experimentar da sua comida, concluiu, com aquele leve sorriso.
- Amanhã, no final da tarde, `tá bom? Perguntou ela.
- Estarei lá, respondeu, Camilo.
Na manhã seguinte, Maria das Dores acordou feliz; todos os afazeres do dia seriam um nada em face da oportunidade de preparar um jantar para o homem que mexia com seu coração.
Desde que a mãe morrera, Maria cuidava da casa como se ainda estivesse cheia de gente. Seu irmão raramente dormia ali, mas sua cama, suas roupas, o chinelo, a toalha pendurada, tudo estava sempre pronto para ele quando aparecia. A maior parte do tempo Maria vivia solitária naquela enorme casa, sem mais que amigos e amigas que no avançar da noite iam embora para suas respectivas moradas e ela dormia sozinha. Tivera um namorado, na verdade, noivo, mas quando falavam em data do casamento, Maria descobriu que ele tinha outra em Orizona. Por um bom tempo o mundo ficou sombrio; ainda bem que nessa época sua mãe ainda era viva e nunca a deixou entregar-se à alguma loucura.

O tempo passou, a mãe morreu e foi enterrada ao lado da sepultura do pai. Depois Maria conheceu Camilo, o domador de cavalos. Apesar da indiferença dele ou talvez por causa disso, foi amor a primeira vista.

Naquele dia, ao cair da tarde, Maria já havia assado um frango, enfeitado a travessa de arroz com folhas de alface, mandioca cozida com pedaços de carne de vaca, travessa de queijo branco com cebolinha verde e uma garrafa de vinho que buscara na venda do Alípio.
A mesa estava enfeitada com toalha quatro cores, as extremidades bordadas a mão e pequenas flâmulas de pano branco descansavam no espaldar das cadeiras.
Maria ajeitou os talheres com carinho, guardanapos dobrados e um pequeno vaso com rosas brancas e vermelhas, colhidas à pouco.
Por um momento percorreu com o olhar a mesa arrumada e, vendo tudo em ordem, foi para a sala esperar o convidado. Sentou-se no banco e aguardou.
As horas passaram e a escuridão chegou. Acendeu a lamparina e voltou a sentar. Deu sete horas, oito horas, nove horas e Camilo não aparecia. O coração de Maria estava doendo, suas mãos suavam, seus olhos ardiam encanto tentava ver o meio da rua.
Passavam cavaleiros, casais apressados, crianças corriam de um lado a outro, mas a figura de Camilo não surgia na soleira da sua porta.
Quando Aninha apareceu Maria deu um salto e foi a seu encontro.
- Aninha, `ocê não viu o Camilo? Perguntou desesperada.
- O que houve? Retrucou Ana.
- Ele ficou de vir jantar comigo... concluiu Maria.
- Ah! Acho que não vem... não. Gaguejou Ana.
- Como assim?

Ana deu um passo para trás e meio insegura explicou:
- Vi ele ainda agora, bebendo com a rapaziada no boteco do Juca... tinha até umas mulheres no meio deles.... acha que era a Mirtes e duas outras. Eles estavam muito alegres... riam e cantavam, dançando e cambaleando.... todos com cara de muito bêbados, arrematou Aninha.
O mundo veio abaixo para Maria. Suas pernas tremiam de decepção e raiva. Agarrou os ombros da amiga, encostou a cabeça e desandou a chorar desesperadamente.

sábado, fevereiro 07, 2009

O TRÁGICO E A SIMPLICIDADE

Fiquei intrigado quando descobri que havia gente morando no alto da montanha. Pela estrada via o terreno coberto de pedras e fendas cortando picos rochosos. Era uma paisagem árida e bruta. Alguém poderia viver alí? O caminho seguia fazendo curvas para a esquerda e depois para a direita. O sol forte brilhava sobre as folhas das árvores retorcidas que teimavam em agarrar-se nas encostas pontilhadas de rochas avermelhadas. Alguns quilômetros adiante abria-se um planalto e o mato adensava. Mais alguns metros e pude ver uma casinha de tijolo cru. Do cume, ao norte, nascia um filete de água transparente e fria, passava por entre pedras enormes soltas no terreno e caía numa pequena represa, ao lado da construção. Ao leste havia um pequeno curral de madeira roliça, com partes caídas e a porteirinha amarrada com cordas. Quando me aproximei, uma senhora surgiu do terreiro do fundo, limpando as mão no avental encardido. Duas crianças corriam ao seu lado e chegaram primeiro ao meu encontro. Cumprimentei a todos e a senhora convidou-me para entrar sem perguntar o que eu fazia alí. Procurei pelo dono da casa e ela me disse que estava na roça, mas logo voltaria. Convidou-me para sentar e explicou que iria à cozinha preparar o café.
Alguns minutos depois o homem surgiu pela porta dos fundos. Era um homem baixo franzino, moreno, com a pele curtir pelo sol. Tirou o chapéu e veio me cumprimentar. Parecia não me ver como estranho. Apertou virilmente minha mão, sorrindo e balançando a cabeça para a frente em sinal de respeito. Não parecia que estava me vendo pela primeira vez. Nenhuma curiosidade em seu olhar, embora evitasse me encarar. A mulher surgiu com um pires à mão, equilibrando o copo de louça branca cheio de café cheiroso. Peguei o pires com a mão direita, passei para a esquerda e com a mão livre levei o copo a boca. O café estava delicioso. Voltei a me sentar e puxei conversa.
- Não imaginava haver gente morando nessas alturas, comentei.
- É difícil mesmo. Mas tem mais outros dois moradores nas redondezas, explicou o anfitrião.
Sua mulher permanecia de pé ao seu lado. Vi as crianças cochichando junto à porta que separava a sala da cozinha. A mulher arrastou uma cadeira para o marido e se retirou.
O homem sentou-se e perguntou meu nome.
- Meu nome e Thomaz.
- Meu nome é Zé. José Arimatéia, mas o pessoal me chama de “Rima”.
- È difícil aparecer gente aqui, comentou.
- Acredito, respondi. - Fico contente que me tenha recebido bem em sua casa.
- Há! Visita é sempre uma felicidade pra gente que vive tão só nesse sertão, afirmou com um leve sorriso.
- Imagino, conclui.
- O senhor fica pro almoço? Perguntou.
- Não sei se é possível. Estou fazendo levantamento dos habitantes da região para a Sucam, expliquei.
- Você é dos Malárias.
- Sim, respondi sorrindo.
- (Malárias são conhecidos os agentes de saúde que trabalham na campanha de combate a malária e outras endemias pelo interior de Goiás)
O casal de criança corria de um lado para o outro em volta de nós. O pai ralhou com eles para que ficassem quietos.
Perguntei o nome do menino que olhava para mim, tentando aquietar-se.
- Zildo, respondeu o menino.
- Fala direito seu nome, moleque! zangou-se o pai. – É Ezildo, moço, conclui o homem, dando um leve tapa na cabeça do filho.
- E o seu? Perguntei para a menina que parecia ser mais nova que o garoto.
- É Marta, respondeu, escondendo atrás do pai.
- E quantos anos você tem?
- 6 anos.
- Você é muito bonita, elogiei a menina.
Ela sorriu envergonhada. Puxou o irmão pelo braço como que querendo que eu voltasse a fazer perguntas a ele.
- Você tem mais filhos? Perguntei a pai.
- Tenho outra filha mulher que está com a avó na cidade.... pra poder estudar.
- Entendo, balancei a cabeça em aprovação. – E esses dois ainda não estão na escola?
- Não sei como fazer. O garoto já fez 7 anos, mas aqui não tem escola. – Penso em ir pra a cidade pra eles estudar. Só que lá preciso de emprego. Aqui planto minha roça e trabalho pros fazendeiros... só sei mexer com gado e lavoura.
Olhei para fora e vi que o sol brilhava mais alto e que as horas estavam passando. Despedi-me deles e saí em direção ao sul a procura dos outros moradores. Antes do cair da tarde precisava voltar, descer a serra até Santa Cruz, onde estava hospedado.
A paisagem daquela montanha não tinha beleza como em outras regiões. Havia muita pedra e as árvores eram pequenas espinhentas e retorcidas. Nos pequenos vales com planícies estreitas, cortadas por riachos, os moradores plantavam lavouras, principalmente milho e feijão. As planícies úmidas que vi não passavam de uns duzentos metros de largura. Muitas vezes os córregos eram represados para que formassem pequenas lagoas, onde criavam peixes e desviavam água para suas casas.
Voltei diversas vezes à montanha da Contenda e sempre tomava café na casa de taipa do Rima. Zeneide, sua esposa, preparava um saboroso café que eu sorvia acompanhado de pedaços de queijo ou batata doce que ela trazia numa bandejinha de lata.
As crianças adoravam prosear comigo. Eu sentava no banco de troncos que ficava do lado de fora da casa e Ezildo e Marta ficavam pulando a minha frente, gesticulando e balançando o corpo como numa dança. Marta apesar de menor era mais conversadeira e alegre; seus cabelos, meio rebeldes, cacheados caiam nos ombros e cobriam parte do rosto. Ela constantemente puxava com as pontas dos dedos as mexas e passava para trás das orelhas. Ezildo gostava de contar dos tombos que sua irmã tomava, como no dia em que atravessavam o riacho, pulando de pedra em pedra; Marta acabou caindo e molhando-se toda ou quando ela correu da vaca que viera cheirá-la inofencivamente.

No final do verão voltei à casa do Rima, durante minhas periódicas rondas de avaliação de controle de endemias, no caso para detecção da presença do percevejo bicudo, causador da doença de Chagas.
A casinha de adobe estava com a porta e a janela abertas, mas não vi gente nem os cães. Parei próximo à porta e gritei:
- ô, de casa! Silêncio.... só ouvi o cacarecar das galinhas, ciscando um monte de gravetos.
- Ô, de casa! Repeti.
Dei a volta em torno da casa, vi que a porta da cozinha também estava aberta, mas não havia ninguém. Olhei para o sul, no rumo da roça, para o norte, na direção da nascente do riacho e não vi gente alguma. Caminhei para a frente da casa e peguei a estrada de volta. Então vi o Rima surgir por detrás das rochas vermelhas, trazendo um bezerrinho nos braços. Zeneide o acompanhava e mais atrás vinha o menino. Esperei que eles se aproximassem, cumprimentei-os sem pegar a mão e seguimos em direção do curral, onde Rima colocou o bezerro.
- O Sr ‘tá bem, seu Thomaz! Perguntou sorrindo e estendendo o braço.
- Eu estou bem, Rima, e vocês?
- ‘Tamos como Deus quer, respondeu. – Vamos chegar, convidou-me, seguindo lentamente em direção à porta da casa. Olhei para Ezildo , o garotinho. Ele tinha um boné cinza empoeirado na cabeça e me olhou sem muita alegria. Bati, de leve, a mão nas suas costas e caminhei com eles. Zeneide foi na frente.
Entramos na casinha e Rima puxou uma cadeira e ofereceu-me para sentar.
- Onde está a Marta? Perguntei.
Os dois se entreolharam, ficaram alguns segundos em silêncio. Rima olhou para mim, sério.
- A nossa filhinha morreu... afirmou baixando os olhos.
- Como assim? Ela morreu? Perguntei incrédulo.
- É verdade, cochichou.
- Mas como ela morreu? Insisti.
- Foi picada de cobra.
- Picada de cobra? Mas hoje em dia ninguém morre de picada de cobra, comentei. E continuei: - é só levar ao médico.
- É mas a gente levou ao benzedor.
- Estão brincando? Perguntei incrédulo.
- É, mas ele benzeu o filho do Joaquim e o veneno não fez nada com ele.
- Mas Rima! Exclamei revoltado. – Nem sempre a cobra mata ou tem veneno suficiente para matar. Vocês deviam ter levado a menina ao hospital.
- Daqui é difícil, justificou Rima cabisbaixo e envergonhado.
- Fosse de cavalo até a fazenda mais próxima.
- Eu sei, respondeu. Quem sabe era o destino dela... concluiu resignado.
Fiquei calado, remoendo por dentro. Aquele casal vivia uma vida tão simples, tão inculta que o mundo deles não era o meu mundo. Viviam isolados, não frequentavam a igreja, não conheciam gente com estudo para trocar informações sobre a vida e até mesmo sobre o mundo de hoje. Eu, sinceramente não sabia o que dizer a eles.
Tentei reconfortá-los.
- Ela deve estar descansando no céu, afirmei sem muita convicção.
- Jesus há de cuidar dela, exclamou Zeneide, a mãe.

quarta-feira, janeiro 21, 2009

O homem tossia todo o dia e toda a noite. Da minha casa, ouvir aquilo me angustiava. Nos dias de calor e sol ele tossia, nos dias de chuva ele tossia, nos dias de frio e vento ele tossia. Sua mulher fazia chá e o cheiro do chá quente espalhava-se pela redondeza. Os vizinhos iam visitá-lo e saiam cabisbaixos e silenciosamente caminhavam para suas casas. Nunca vi um médico visitá-lo; apenas o enfermeiro vinha, diariamente, aplicar-lhe injeção. Diziam que o medico o havia desenganado. Alguns vizinhos não o visitavam porque temiam que sua doença fosse contagiosa, outros evitavam visitá-lo porque não queriam sentir pena. Sua família não era grande. Os filhos, as vezes, brincavam no quintal, mas a maior parte do tempo ficavam com os avós. Na frente da casa havia uma palmeira, um belo pé de jerivá com três cachos carregados de coquinhos amarelos. Os periquitos gostavam de assentar alí e comer os frutos enquanto faziam uma enorme e estridente algazarra.
Quando a esposa saia na rua eu a observava caminhar em direção do mercadinho. Seus passos eram lentos e vacilantes, seu corpo inclinava ora para um lado ora para o outro. Parecia uma mulher fraca e triste, embora sem ar de doente. Seus cabelos eram mal cuidados e os pés calçavam uma sandália de tiras simples e desgastadas.
Mas a todo o tempo o homem tossia.
A gente desejava poder ajudar, poder fazer alguma coisa que curasse aquela criatura mas nada vinha a mente. Fui visitá-lo numa tarde fria e garoenta. Ele estava deitado na cama de solteiro armada no meio do quarto. Esta ficava bem no centro, de forma que as pessoas que o visitavam podiam rodear a mesma e observá-lo de todos os ângulos. O doente acompanhava a gente com o olhar e seus braços descansavam sobre o cobertor que cobria seu corpo. O travesseiro era alto e uma toalha encardida ficava amassada ao lado. Quando começava a tossir, ele pegava a pequena toalha e a leva a boca como que para expelir menos bactérias aos visitantes.

Numa noite calma e com lua cheia a tosse cessou. A casa ficou em silêncio. Apenas um pouco de luz escapava pelas frestas da janela do quarto. Não ouvi choro nem lamentos. Tudo estava quieto.Apenas os latidos dos cães da rua e o cricri dos grilos do quintal quebravam o torpor do ar fresco e leve da madrugada.
De manhã vieram contar que o vizinho havia morrido.

sexta-feira, janeiro 09, 2009

Abandono



A mãe não quis o filho...
Ninguém o quis naquela manhã,
Abandonado à beira da estrada.
No ar frio, suas perninhas agitavam.
Os carros passavam uns pelos outros,
Buzinas, pneus na lama vermelha.
O corpo sobre o pano mal lavado,
As mãozinhas atacando o ar gelado
Da primavera chuvosa.
Algumas rolinhas assustadas
Esticavam o pescoço e ouviam o choro.
Os automóveis passavam...
Alguém parou,
Outros fizeram uma roda.
Nos braços daquela mulher,
Ouvindo vozes e suspiros,
O bebezinho sorriu!